Sociedades Precapitalistas, vol. 5, nº 1, diciembre 2015. ISSN 2250-5121
Universidad Nacional de La Plata. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación.
Centro de Estudios de Sociedades Precapitalistas (CESP)

 

CONFERENCIA /CONFERENCE

 

Questões sobre Classes, Dominação e Conflitos Sociais na Alta Idade Média

 

Mário Jorge da Motta Bastos

Universidade Federal Fluminense
velhomario@gmail.com
Brasil

 

Cita sugerida: Motta Bastos, M. (2015). Questões sobre Classes, Dominação e Conflitos Sociais na Alta Idade Média. Sociedades Precapitalistas, 5(1): e004. Recuperado a partir de http://www.sociedadesprecapitalistas.fahce.unlp.edu.ar/article/view/SPv05n01a04

 

Resumo
Exceto para uma História que se mobiliza, atualmente, muito mais pelas supostas continuidades do que pelas mudanças, os períodos das grandes transições continuam a suscitar o esforço interpretativo dos especialistas. É longa a lista daqueles que se dedicaram ao problema da transição da Antiguidade ao Medievo, debruçando-se sobre um período mal – e desigualmente – iluminado pelas fontes para estabelecer diversas vias interpretativas do fenômeno. Em que pese a superação da perspectiva catastrófica que fazia enfermar as análises pioneiras daquele contexto, foram também expurgadas das abordagens correntes o reconhecimento da centralidade das manifestações das contradições e dos conflitos sociais como motores fundamentais da transformação social no contexto em questão. A documentação de época nos remete, se apoiados por um referencial teórico adequado, a um processo decorrente das contradições e do jogo de ações e reações que materializam os conflitos e o movimento da História. A transição da Antiguidade à Idade Média foi pautada por manifestações de antagonismo social diversas, o que nos permite considerar que o âmbito dos confrontos era, então, o da própria sociedade.

Palavras-Chave: História Medieval; Transição; Conflitos; Luta de Classes.

 

Notes on Classes, Domination and Social Conflicts in the High Middle Ages

 

Abstract
Except for a History that is mobilized, nowadays, much more by the supposedly continuities than the changes, the periods of major transitions continue to demand interpretative effort from specialists. It is long the list of those who have been dedicated to the transitional problem between the Antiquity and the Middle Ages, focused on a period of poor and unequally distributed sources, trying to shed light and establish various interpretative means for this phenomenon. Albeit having overcome some of the catastrophic perspectives hindering the pioneer analyses within this context, the current approaches have also eliminated the recognition of both the contradictory manifestations and the social struggles acting as central and fundamental engines of the social transformations within the discussed context. When supported by an adequate theoretical background, documents from the period lead us to a process resulting from contradictions and a scenario of actions and reactions that eventually materialized the conflicts and moved History forward. The transition from the Antiquity to the Middle Ages was encompassed by diverse social antagonist manifestations, which allows us to consider that the arena of disputes were, therefore, that of the society itself.

Keywords: Medieval History; Transition; Conflicts; Class Struggle.

 

1 - Introdução

Realidade social intrínseca e fundamental às sociedades pré-capitalistas até que o advento da sociedade burguesa fez com que “tudo que era sólido se desmanchasse no ar!”, os campesinatos constituem hoje uma força social dinâmica em especial em diversos países periféricos do mundo, alvos principais da concentração fundiária e da disseminação do agronegócio e um dos principais opositores do processo insidioso de subsunção real do campo e da agricultura ao capital. Organizados em associações várias de cunho local, nacional (Contag, MST, no Brasil) e internacional (Via Campesina), as comunidades camponesas revelam sua tenacidade na luta pelo acesso à terra e pela preservação dos seus quadros de vida comunitária e de solidariedade “aldeã”, assumindo a condição de protagonistas na resistência às formas ampliadas de reprodução do capital. Tal agenciamento constitui mais uma prova do equívoco preconceito que pretende negar aos camponeses qualquer capacidade de ação política consciente, organizada e transformadora, deformação que precisa ser superada – e o será de forma mais efetiva e plena de potencialidades – pelo resgate histórico do protagonismo camponês nas diversas sociedades que antecederam o advento da sociedade burguesa contemporânea.

Urge que o meio acadêmico – aos seus profissionais engajados nas lutas do presente, em geral, aos historiadores em especial, e ainda aos medievalistas em particular –, entre outras iniciativas, as ações voltadas a uma perspectivação e fundamentação histórica das formas de organização e sociabilidades camponesas. Abordar-se-á em detalhe, e em perspectiva comparada, as diversas experiências históricas de estruturação das sociedades de base agrária, das formas de dominação sofridas e de resistência desenvolvidas pelos campesinatos ao longo da História, fomentando e apoiando a elaboração de uma história do “mundo camponês” que, inscrita na longa duração, desvele o seu protagonismo, fundamente a sua ação no tempo presente e apoie os seus (nossos!) anseios de futuro.

A iniciativa, segundo creio, não só dará uma dimensão vigorosa e pulsante às nossas pesquisas, como fortalecerá aqueles movimentos sociais em face dos dificílimos enfrentamentos que realizam cotidianamente. Trata-se, como propunha Walter Benjamin, de “despertar no passado as centelhas da esperança”, porque o inimigo não tem cessado de vencer! No Brasil, o agronegócio – hoje o maior inimigo, nos países periféricos, dos movimentos rurais –, insinua-se até em meio à educação rural, pretendendo apresentar-se aos filhos e filhas de camponeses como o clímax histórico “natural” de um longo processo que remete à própria Revolução Neolítica com a invenção da agricultura! Não há dúvida de que, também aqui, o passado está em disputa, e é nela que pretendo me integrar.

2 - Uma sociedade de base camponesa na Alta Idade Média?

A publicação da obra magna de Chris Wickham (Wickham, 2005) constituiu um ponto de inflexão em níveis e campos diversos dos estudos voltados aos primeiros séculos medievais, período fundamental da formação das sociedades em questão. Em que pese, no entanto, a diversidade de campos e de elementos sobre os quais a obra incide – dada a sua abrangência e fôlego enormes – para os efeitos da minha intervenção inicial neste encontro merecem destaque especial às suas considerações relativas à configuração do campesinato, à da força de trabalho e, em íntima associação com essas, o problema das relações de dominação (estado e aristocracias) e o da transição da Antiguidade à Idade Média ou, como o autor preferiu referir, ao da construção social (framing) dos primeiros séculos medievais.

Ou seja, a obra de Wickham e as posições e perspectivas que dela decorrem constituem parâmetro obrigatório incontornável para os estudiosos do período, a despeito – ou mesmo em função – dos níveis de concordância e/ou discordância que possamos manifestar. Não é meu objetivo promover aqui uma resenha aprofundada da obra, mas me detenho em algumas de suas perspectivas nos parágrafos que se seguem, tentando articular o núcleo dos seus argumentos.

Parece inegável que, em meio a tantos elementos tradicionalmente mobilizados nos debates acerca da transição, uma das mais inovadoras perspectivas avançadas por Wickham refira-se à considerável liberdade que teria caracterizado a existência e a reprodução camponesa nos séculos em questão, primazia que levou o autor a referir-se à vigência de um modo de produção camponês predominante em diversas regiões da Europa de então. Crítico ferrenho do que designou como a metanarrativa da substituição mecânica do escravismo pelo feudalismo, nosso autor advoga a vigência de um período relativamente longo e favorável ao campesinato, cujas comunidades, gozando de graus consideráveis de autonomia de existência, conheceram quando muito uma limitada incidência das demandas de uma aristocracia fragilizada e constrangida em sua capacidade de exigir e arrebanhar excedentes.

Para Wickham, a desintegração do estado romano representou o principal ponto de inflexão na história do período. A partir do século V, o sistema fiscal romano entrou em colapso, em grau elevado em razão do assentamento dos guerreiros germânicos nos patrimônios fundiários das áreas conquistadas e da sua constituição como terratenentes, fatores que, a par de uma estrutura estatal mais simplificada, demandavam uma menor arrecadação de impostos. Esta nova aristocracia foi beneficiada com terras, conseguiu mobilizar rendas e seu poder tornou-se mais localizado, processo do qual o estado saiu fragilizado.

Teria sido essa a dinâmica que favoreceu a ascensão de um campesinato livre, ainda que não totalmente alheio a certo grau de controle aristocrático. A relação entre esses e o campesinato foi marcada por uma extrema variação regional, abarcando desde regiões onde a dominação aristocrática foi vigorosa a áreas onde predominou a liberdade camponesa, como no extremo norte da Europa. De qualquer forma, mesmo em regiões onde já se havia imposto a lógica do modo de produção feudal – como na região de Paris por volta do ano 700 – subsistiam enclaves de comunidades camponesas livres que pontilhavam a paisagem rural.

Wickham está longe de conceber imutáveis as estruturas que se arrastariam até o século XI. O hiato havido entre a desintegração do estado romano e dos seus mecanismos de exploração e a construção de novos instrumentos de controle aristocrático deu ensejo à vigência de séculos de autonomia camponesa em face de uma aristocracia de corte antigo fragilizada em seu poder de mando, porque seria essencialmente dependente do funcionamento da imensa máquina administrativa e arrecadadora constituída pelo estado imperial.

Em sua obra, nosso autor concebe o estado como um “tipo ideal” (Astarita, 2011: 199) baseado na centralização da autoridade legítima, na especialização das funções governativas, no conceito de poder público, na existência de recursos estáveis e independentes para aqueles que exercem o poder e num sistema classista de extração de excedentes. Salvo engano de minha parte, seu “modelo” parece aproximar-se, quando muito, dos estados pré-capitalistas orientais, em que a elite dominante controlava a propriedade da terra a partir do centro estatal, encabeçado por um “monarca proprietário” que estaria na origem de concessões que raramente escapavam à sua ascendência.

3 - Estado e propriedade privada em Roma

Ora, o estado antigo típico é aquele constituído pelos impérios burocráticos “redistributivos” nos quais o estado exercia um controle substancial da economia, ficando o acesso à propriedade da terra por uma elite dirigente intimamente associado ao serviço do estado. O campesinato, por seu turno, estava submetido à extração de excedentes menos pela sua sujeição pessoal a proprietários individuais privados do que pela sujeição coletiva ao estado apropriador e à sua aristocracia governante. As classes sociais fundamentais confrontavam-se, assim, não de forma direta, como produtores e apropriadores individualizados, ou na condição de grandes e pequenos proprietários, mas coletivamente, como estados apropriadores e comunidades camponesas submetidas. Este tipo de estruturação tende, ademais, a frear, até certo ponto, o desenvolvimento da propriedade privada.

Ao contrário, quando a atividade econômica baseia-se na propriedade privada, como era o caso no Baixo Império, o vínculo entre o interesse privado e a burocracia estatal é extremamente complexo e potencialmente conflitante, característica essencial que escapa ao “tipo ideal” que orienta a análise de Wickham. De fato, o ponto crítico fundamental da sua definição reside no problema crucial da articulação da burocracia estatal com as classes dominantes.

Segundo Ellen Wood (Wood, 2002), o governo imperial romano deu ensejo a uma nova forma de organização política que combinou terratenentes e camponeses numa mesma comunidade cívica e militar. A unidade de apropriadores e produtores, ricos e pobres, incorporados nesta nova forma de estado constituiu, como diriam os gregos, uma “harmonia de opostos”, impregnada até o cerne de sua dinâmica interna pelas tensões e contradições emanadas dos conflitos internos a cada uma das classes sociais e entre as mesmas.

Roma constituiu uma forma de império particularmente bem adequada à fundamentação do domínio da propriedade privada, tanto no seu centro quanto nas províncias. O império apoiou o fortalecimento da propriedade, promovendo uma síntese ímpar entre o poderoso estado imperial e a vigorosa propriedade privada, dois focos distintos de poder baseados num delicado equilíbrio entre um estado centralizado e um governo municipal segmentado.

Impôs-se, assim, à história romana uma lógica de desenvolvimento complexa e contraditória, inerente à própria natureza da propriedade privada e da classe. A propriedade privada e a exploração de classe requerem o poder coercitivo para sustentá-las; e os poder de apropriação do senhor individual sempre depende, de várias formas e em vários graus, de um poder coletivo de classe. Os produtores diretos, mesmo quando explorados individualmente, nunca confrontam seus exploradores unicamente como indivíduos. Mesmo proprietários camponeses que estão relativamente isolados na produção tendem a estarem organizados em grupos comunais, especialmente em comunidades aldeãs. Os apropriadores precisam encontrar meios de neutralizar as divisões no interior de suas próprias classes, o conflito intraclasse que resulta da propriedade privada e da competição pela terra e pelas fontes limitadas de trabalho excedente. Há sempre uma tendência em direção à centralização que permitirá aos exploradores individuais suportar a resistência dos produtores e manter seu domínio sobre a propriedade. Esta tendência, contudo, é frequentemente contrabalançada por forças de compensação.

A própria resistência dos produtores pode atuar como uma força contrária à centralização, assim como o conflito intraclassista no interior da classe dominante. Mais especificamente, na medida em que a classe dominante não está diretamente organizada como um estado apropriador – em outras palavras, na medida em que classe e estado não são coextensivos – eles chegam, até certo nível, a constituir dois poderes distintos e em aberta competição. Houve, pois, uma tensão constante entre centralização e fragmentação política, entre forças centrípetas e centrífugas, inerente à própria natureza da propriedade privada e das relações de classe; e a “lógica” específica da propriedade privada e da classe operou, por assim dizer, mais pura e completamente em Roma do que em qualquer outro lugar no Mundo Antigo. A ascensão e o declínio do Império Romano não podem ser compreendidos sem que identifiquemos as condições que, alternadamente, promoveram ou obstruíram uma ou outra das tendências contraditórias da centralização e da fragmentação política inerentes às relações entre os terratenentes e os camponeses.

Mesmo no auge de sua centralização, o estado imperial romano continha as sementes de sua própria fragmentação. O ônus da centralização recaía no campesinato, cuja capacidade de suportá-lo era limitada. Ao mesmo tempo, o “absolutismo” imperial desenvolveu-se, em grande parte, para contrapor-se à dura competição e ao “individualismo” autodestrutivo característico da aristocracia, de forma que a fundação do estado na classe dominante foi sempre frágil e contraditória. Mais especificamente, é possível dizer que a segmentação era, paradoxalmente, a verdadeira essência da administração imperial romana. De fato, o estado romano era, em grau elevado, uma confederação de aristocracias locais proprietárias.

A tendência de fragmentação era inerente à própria estrutura do estado romano. Ao fim e ao cabo, tais tendências prevaleceram e, para a compreensão do seu curso parece-me mais afinada a interpretação que Wickham desenvolveu em “The Other Transition” (Wickham, 1984). A pesada estrutura estatal tornou-se um fardo intolerável para os camponeses e um dispensável estorvo para os grandes aristocratas. Quanto mais que no processo de sua desintegração ele deixou estruturada uma ampla rede de dependências pessoais que vinculava os camponeses aos senhores. O próprio estado ajudou a criá-la quando, em períodos de crise, adotou medidas que – muito provavelmente com preocupações fiscais – atrelou muitos camponeses à terra, favorecendo assim a criação de uma força de trabalho agrícola cativa para os grandes proprietários. Também parece não haver dúvida de que muitos camponeses mantinham uma relativa dependência dos grandes senhores visando à obtenção de proteção, inclusive contra a opressão estatal. De qualquer forma, o colonato consistiu num modo de exploração com óbvias vantagens para os grandes proprietários, e a meu ver tendeu a absorver também os escravos, na medida em que muitos deles acabaram alocados em possessões de terra em condições semelhantes a dos coloni e servi.

Assim, com Ellen Wood, considero que a análise da transição da antiguidade ao feudalismo deve estabelecer

“as condições singulares pelas quais, após diversas tentativas monárquicas de recentralização de um sistema político fragmentado, os senhores fundiários foram capazes, por certo tempo, de manter o poder parcelizado e de sujeitar os camponeses a relações de dependência pessoal sem o suporte de um estado centralizado.” (Wood, 2002: 54)

4 - O papel dos conflitos na História

Tendo me referido à análise da transição pretendo, na sequência, destacar um elemento essencial do movimento da História que me parece descurado em muitas de suas tentativas, e mais uma vez na obra de Wickham. Depois da exacerbação da perspectiva nos “clássicos” elaborados ainda sob a influência do stalinismo, não se tornou incomum restringir o curso de vários fenômenos internos ao processo – como a questão do assentamento de escravos – à exclusiva deliberação e iniciativa das classes dominantes. Ora, o que a documentação do período revela, apesar de seus consideráveis limites, remete-nos, se apoiados por um referencial teórico adequado, a um processo decorrente não da intervenção da vontade soberana de uma classe única, mas das contradições e do jogo de ações e reações que materializam os conflitos e o movimento da História.

Os historiadores marxistas e os de feição conservadora, embora divirjam radicalmente quanto à importância das lutas sociais para a evolução das sociedades, afirmando uns que são explosões inúteis, ou até nocivas, embora reveladoras de problemas reais, e considerando-as os outros como motor de transformações positivas, muitas vezes convergem ao manifestarem uma concepção redutora dos conflitos, incluindo na classificação apenas certo tipo de fenômenos, geralmente definidos em função do número de participantes, do caráter explícito, ou de preferência violento, dos movimentos, da apresentação de reivindicações formuladas sistematicamente, e, acima de tudo, do objeto dessas exigências, que deveria corresponder ao que os historiadores consideram ser a esfera do econômico.

Ora, os conflitos não constituem fenômenos isolados, desconexos ou estranhos às operações cotidianas do funcionamento das sociedades humanas, mas supõem uma perspectiva diferente em sua abordagem, revelando-se como manifestações sensíveis das contradições que caracterizam os sistemas sociais. Os conflitos sociais não são fenômenos isolados, mas uma expressão do próprio funcionamento do sistema, isto é, eles são a manifestação sensível das contradições que o caracterizam. “Eles materializam o tempo e são, por isso, o fundamento da história” (Bernardo, 1997: 15-21). Assim, no conjunto dos conflitos incluo todas as formas de manifestação e expressão das contradições sociais.

“Perante a violência nas relações com os camponeses, de que os senhores deixaram abundantes provas, e sendo tão bem conhecida a miséria da vida rural, espantam-se alguns historiadores por não ter havido neste período um maior número de sublevações, nem terem ocorrido explosões de cólera com maior frequência e amplitude. Procura-se por vezes explicar esta relativa acalmia atribuindo o defeito aos documentos que, se nos tivessem chegado com maior abundância ou com outra informação, decerto relatariam numerosos confrontos” (Bernardo, 1997: 21).

A transição da Antiguidade à Idade Média foi pautada por manifestações de antagonismo social muito diversificadas, o que nos permite considerar que o âmbito dos confrontos era, então, o da própria sociedade. Como destaca Edward P. Thompson, “jamais houve época em que a dialética da imposição da dominação e da resistência a essa imposição não fosse central no desenvolvimento histórico” (Thompson, 2001: 258). Na primeira parte da sua clássica obra, Ste. Croix (Sainte Croix, 1982) demonstra, a meu ver acertadamente, o equívoco de se limitar o reconhecimento da presença da classe social apenas na vigência, tanto da consciência de classe quanto de um conflito político ativo. Assim, o autor se refere às relações entre senhores e escravos no mundo antigo como lutas de classes mesmo na ausência de qualquer conflito aberto. Trata-se, aqui, de restabelecer a exploração como marca registrada da existência das classes sociais. É, certamente, importante que se reconheça que o fato objetivo da exploração e as relações inerentemente antagônicas que ela favorece têm efeitos profundos no processo histórico, mesmo na ausência de conflito aberto e de luta política, algo de que muitos historiadores e sociólogos parecem se esquecer.

As relações de exploração exercem influência determinante nos processos sociais e na organização da sociedade mesmo quando não se expressam em lutas políticas conscientes entre classes. Por exemplo, a necessidade de fortalecer as relações de propriedade e de garantir e reforçar a apropriação dos excedentes em face da resistência dos produtores diretos afeta profundamente a natureza das formas jurídicas e políticas de uma dada sociedade, além de expressarem-se em formas ideológicas, em atitudes relativas ao trabalho, na justificação das hierarquias sociais etc., mesmo quando tais produtores não se apresentam conscientemente organizados como classe. Como propôs E. P. Thompson, se a classe é algo além de um construto teórico imposto aos registros históricos, é porque ela pode ser vista como um padrão que se manifesta nas relações sociais, nas ideias e nas instituições se as analisamos ao longo de um determinado período e, em especial, nos contextos de transformação social (Thompson, 1968: 10-11).

Tal perspectiva, contudo, não se confunde com aquela que submete a existência da classe à manifestação da sua consciência, mas implica em que a classe, para ter algum sentido de fato, precisa de algo mais do que uma existência declarada apenas por uma definição. Ora, é imperioso que sejamos capazes de demonstrar sua manifestação no processo histórico e na articulação das relações sociais e políticas, esteja ou não a sua dinâmica evidenciada em claras manifestações de consciência de classe. Trata-se, portanto, de demonstrar como a condição de classe afeta efetivamente o processo histórico.

5 - A resistência camponesa

Ainda que meu contexto fundamental de análise aqui consista na transição, não é demais considerar que a resistência camponesa foi um elemento pervasivo na história romana, em especial no processo de expansão do latifúndio, desde que consideremos, uma vez mais com Ellen Wood, “que a característica distintiva da sociedade romana tenha sido não tanto a extensão que a escravidão atingiu na sua estruturação econômica, mas o caráter único e singular assumido ali pelas relações tecidas entre os produtores livres e os apropriadores, em especial entre a aristocracia fundiária e o campesinato” (Wood, 2002: 17). Teriam sido essas as relações determinantes, fazendo do escravismo um “efeito”, uma variável dependente.

Na república romana anterior à expansão, os camponeses produziam excedentes para os senhores fundiários na condição de rendeiros, meeiros, trabalhadores temporários, havendo um alcance limitado para o trabalho externo à unidade familiar camponesa. A aproximação do fim da República configurou um contexto caracterizado por enorme concentração e disparidade de riqueza, por um aparato imperial crescente, a par de um crescimento acentuado da escravidão e pela substituição parcial dos camponeses pelos escravos em parte do império. Também aqui, portanto, a questão da escravidão é, em primeiro lugar e acima de tudo, a questão do campesinato. Se a história da escravidão em Roma constitui um capítulo da história do campesinato, ela é também a história da expropriação camponesa e das lutas pela terra.

O campesinato representou o principal sustentáculo militar da expansão imperial romana e, para muitos camponeses, foi por meio de sua exploração como soldados que produziram a riqueza de seus compatriotas aristocratas. Isso teve efeitos contraditórios. A função militar do campesinato, por exemplo, foi a base para a escravidão de várias formas: não apenas no sentido óbvio de que o suprimento de escravos era diretamente dependente da conquista militar, ou de que os camponeses ausentes eram sempre substituídos pelos escravos na produção agrícola, mas também no sentido de que a ausência frequente e prolongada dos camponeses nas campanhas militares foi um fator crítico favorável à sua expropriação. As atividades militares do campesinato tornaram-nos menos disponíveis para exploração direta em virtude de sua ausência física, mas sem dúvida também em razão dos poderes de resistência derivados da posse de armas.

Em Roma, ao fim e ao cabo, a vitória dos grandes proprietários terratenentes foi mais plena, ainda que nunca completa; e a economia “senatorial”, junto com o estado aristocrático, tornou possível a expansão imperial e a concentração da propriedade, a par de uma extensão ímpar do escravismo – restrita a certas regiões e períodos – sem nunca suprimir outras formas e mecanismos de extração de excedentes no Império. Assim, em Roma estavam postas as bases para uma reversão do processo que criou o cidadão-camponês e limitou a exploração dos camponeses, estabelecendo uma fundação para uma nova sujeição na servidão medieval. É a relação entre senhores e camponeses que fornece o elemento de continuidade na história greco-romana, desde a formação dos primeiros estados gregos, o declínio do Império Romano e a ascensão do feudalismo.

A crescente sujeição dos produtores livres nos últimos anos do império, acompanhada pela parcial liberação de escravos que foram estabelecidos na posse da terra e submetidos a uma dependência de tipo servil, não testemunham apenas a decrescente rentabilidade da escravidão em condições declinantes de suprimento, como propõe Ste. Croix (Sainte Croix, 1982: 187 e ss.), nem simplesmente o declínio – como sugere Pierre Dockès (Dockès, 1984: 35 e ss.) – do poderio político e militar do estado. Tais desenvolvimentos podem indicar também o apelo decrescente, para as classes proprietárias, de uma forma de exploração pesada e dependente do oneroso aparato necessário para mantê-la. A retração progressiva do estado imperial, devida a razões diversas, foi de certo um fator que reduziu a viabilidade do escravismo, mas sua retração foi ela própria decorrência da perda da base social de um estado que, promovendo a fixação de uma massa de colonos no campo, ainda que por interesse fiscal originariamente, favoreceu a afirmação de uma classe proprietária que impunha novas relações de exploração pelas quais sujeitava produtores livres à condição de dependência pessoal.

Mas a dissolução do latifúndio romano e a constituição do regime senhorial na Alta Idade Média carrearam também manifestações diversas de lutas sociais que se inscrevem, plenamente, num quadro de relações triangular.

“Entre a resistência dos explorados a formas de exploração arcaicas ou inovadoras e o sonho de reconstituir uma comunidade rural já extinta, ou condenada a desaparecer, criaram-se condições para o reforço da solidariedade de magnates com grupos de camponeses, nas disputas internas da aristocracia. Desta tripla tensão resultaram movimentos sociais novos, que condicionaram a evolução do regime e acabariam por transformá-lo inteiramente” (Bernardo, 1995: 21).

O alvorecer do século V presenciou a transformação de vastas regiões de um Império Romano Ocidental combalido em palco de violentos confrontos sociais. Apresentam-se ao primeiro plano da cena histórica, mais uma vez, os Bacaudae, insurretos assim designados quando das revoltas ocorridas no noroeste da Gália em fins do século III, a despeito das raízes mais profundas do movimento. Desde 407, foram assoladas pelas revoltas diversas regiões da Gália, dos Alpes e da Península Ibérica. Aqui, os Bacaudae agiram à luz do dia na província Tarraconensis e na Gallaecia, cuja região bracarense foi palco de pilhagens e saques promovidos pelos camponeses.

A frequência e, talvez mais até do que ela, a latência de tais movimentos, constantemente derrotados, porém dificilmente suprimidos, permitem atribuir-lhes o cumprimento de um papel considerável não apenas na derrocada do edifício imperial e no seu sistema de arrecadação de impostos, como também, e essencialmente, na constituição de novas formas de relações economicossociais. Na medida em que os revoltosos englobavam escravos e camponeses dependentes em fuga, favorecendo a deserção de outros tantos, os ataques lançados contra os grandes patrimônios fundiários promoviam, para além de muita destruição física imediata, a emancipação de grande parte dos produtores diretos, permitindo a ex-escravos e a livres apoderarem-se de parcelas de terra que passavam a cultivar por sua conta e em seu benefício. Como bem observou Pierre Dockès (Dockès, 1984), a ação direta dos escravos na obtenção de direitos sobre a terra pressionou por sua fixação como casati, concorrendo assim à transformação do sistema produtivo e da organização social.

A concessão de liberdade com reserva de obsequium, ou a simples fixação do “escravo nominal” num lote de terreno às suas expensas não teve por determinante primário a deliberação calculista dos grandes proprietários fundiários, mas resultaram dos vários séculos de lutas travadas pelos próprios escravos, que tiveram nas fugas cotidianas e nas deserções maciças uma das expressões de maior visibilidade. Creio possível atribuir à aristocracia medieval ao menos uma racionalidade econômica de base: impunha-se sempre “negociar” as taxas de exploração e, com relativa frequência, consentir em reduzi-las em prol da manutenção da força de trabalho que perigava evadir-se, e evadia-se. Permitam-me uma menção de soslaio aos limites da perspectiva jurisdicista que campeia ainda na historiografia dedicada ao período: para muitos de seus especialistas, (García Moreno, 1975) o nível de extração de rendas foi, em terras ibéricas, bastante tênue, tendo em vista que a legislação visigótica a limitou a 1/10 da colheita. Sob tal perspectiva, jamais houve intervenção econômica estatal mais vigorosa do que aquela, constituindo-se o estado visigodo no maior exemplo de economia palaciana da História!

Justiça seja feita, portanto, a Marc Bloch, que expressou claramente alhures a percepção de que a revolta camponesa foi ingrediente tão intrínseco ao regime senhorial quanto a greve o é da grande empresa capitalista, além de ter configurado o caráter duplo daqueles movimentos, ressaltando que o grande senhorio jamais absorveu plenamente as comunidades camponesas e que as grandes revoltas ocorridas, em surtos periódicos, até a Revolução Francesa tinham por razão a contradição essencial entre ambas as instituições (Bloch, 1960-1961: 175).

Mas, para além das explosões de violência, a fuga parece ter configurado a forma mais típica e constante da resistência no período. As suas manifestações maciças e episódicas vinculadas aos grandes movimentos e insurreições foram perenizadas em manifestações menos espetaculares, porém efetivas, um fluxo cotidiano de fugas de escravos e cultivadores livres aos quais os senhores pretendiam reter em suas terras e em gravosa situação. “Fugir parece ter sido, e não só nesta época, o recurso constante dos camponeses, e um dos mais eficazes” (Bernardo, 1997: 25). A legislação de época e a iniciativa dos poderosos visaram, por instrumentos diversos e com potencial cada vez mais draconiano, conter a deambulação aparentemente generalizada da mão de obra no período. Mas, também a este nível uma perspectiva marcadamente jurisdicista faz enfermar a abordagem do tema, limitando as possibilidades e a amplitude de sua compreensão. A de todos conhecida elevada frequência com o que o tema é abordado na documentação de época serviu, a autores como Pierre Bonnassie (Bonnassie, 1993), como índice a atestar a importância, a amplitude e o vigor do escravismo na Alta Idade Média Ocidental, civilização que merece, portanto, a inequívoco epíteto de escravista.

Ainda que comum aos códigos jurídicos romano-germânicos, o problema é objeto de um tratamento especial – em termos tanto qualitativos quanto quantitativos – na legislação visigótica, e parece-me não haver sentido em restringi-lo a uma mera manifestação retórica jurídico-formal. Mas tamanha extensão e transcendência viriam a ser tomada, pelo referido autor, como índice do vigor da instituição e da falta de liberdade e mobilidade que caracterizava a mão de obra do período. Como bem destacou João Bernardo, seria grande a possibilidade de superarmos muitos dos “diálogos de surdos” que infestam de ruídos a arena do ofício se os historiadores calcassem, com clareza, a total irredutibilidade do funcionamento das relações sociais aos conceitos jurídicos (Bernardo, 1995: 11). À categoria jurídica que predomina no discurso da época, dada a natureza predominantemente normativa das fontes que subsistiram, deve ser conferida uma acepção estritamente social.

E o formalismo jurídico pode chegar a redundar em paroxismos extremos. Considerando-se a legislação com base na qual Pierre Bonnassie (Bonnassie, 1993) confere àquela sociedade o epíteto de “escravista”, verificamos, em primeiro lugar, de sua disposição diacrônica, que as dificuldades de enquadramento do escravo em seu estatuto e condição agravaram-se ao longo do período. Segundo avaliação de M. Finley, “... vinte e uma disposições sobre fugitivos em um código visigodo sugere que a lei era violada com regularidade” (Finley, 1984: 145). Os primeiros dispositivos legais, estabelecidos por Eurico, mantiveram a sua relevância durante todo o período de vigência do reino visigodo, recebendo emendas e adições régias desde Leovigildo até Égica. No alvorecer da oitava centúria o quadro parecia ainda mais gravoso. Cerca de 702, a novella IX, 1, 21 afirma que a extensão das fugas assumira tamanha dimensão a ponto de que não havia lugar do reino onde não houvesse escravos fugitivos, situação que derivaria da incúria dos responsáveis pela repressão. Contudo, não é difícil adivinhar que dessa avaliação decorreram medidas ainda mais duras. Por esta lei de Égica acima citada, ficavam os habitantes de qualquer localidade à qual afluíssem “suspeitos” diretamente responsabilizados pela perseguição. Reunidos todos os membros da comunidade, deviam averiguar em conjunto a quem pertencia o suposto fugitivo, quando e de onde se dera a pretensa fuga, e reintegrá-lo imediatamente ao patrimônio de seu senhor. Ficava, a partir de então, envolvida a coletividade local com o destino do cativo, uma vez que o descumprimento da lei previa a pena de duzentos açoites a cada um de seus integrantes (Zeumer, 1973). Qual terá sido a contraface de medidas repressivas tão duras? A ampla simpatia suscitada pelos fugitivos entre as comunidades camponesas que os acolhiam?

Todo este anseio de intervenção punitiva permite divisar, entre outros aspectos, a formação de uma rede de solidariedades “plebeias” atuando em benefício dos “trânsfugas” diversos. Parece que de fato não era incomum que fossem escravos a acobertar a fuga de seus confrades. Duas leis antiquae euricianas, atualizadas por Leovigildo, consideravam a possibilidade de um escravo ocultar um fugitivo (IX, 1, 1) ou de auxiliá-lo na fuga, rompendo inclusive as correntes que o atavam, se as houvesse (IX, 1, 2).

Será razoável continuar afirmando-se, em face do quadro estabelecido, que teria caracterizado a Espanha Visigótica ao longo de todo o período o predomínio absoluto de um regime de trabalho calcado na total ausência da liberdade e na rigidez da fixação do produtor à propriedade senhorial? Parece-me que a perspectiva só pode ser preservada se nos alinharmos com o discurso e com as medidas punitivas impostas, denunciando o crime e exigindo a condenação dos culpados pelo desrespeito à ordem e pela transgressão das leis. Não seria a primeira, e de certo tampouco será a derradeira ocasião em que um historiador legalista, deliberada ou inadvertidamente, cumpre a função de reforçar e fazer ecoar os ditames dirimidos por alguma elite dominante qualquer do passado, reproduzindo, não sem um certo orgulho de sua erudição, as posições de classe e a fundamentação das desigualdades sociais.

Pierre Bonnassie, no artigo já referido e dedicado à memória de Marc Bloch, restabelece em bases novas a proposição deste autor em relação ao possível papel cumprido pela Igreja e pela religião cristã na liberação da força de trabalho. Em que pese a reafirmação de um juízo global negativo em relação ao tópico, para Bonnassie os edifícios de culto, sobretudo aqueles erigidos nos meios rurais do ocidente – capelas privadas de grandes proprietários – teriam assumido ares de centros de sociabilidade favoráveis a uma espécie de “autorreconhecimento” por parte dos escravos. A frequência às igrejas fomentou a convivência destes com os camponeses livres, ainda que pobres e submetidos a semelhantes vexações, o que daria ensejo a algo muito mais vigoroso em seu potencial de transformação do que as relações de solidariedade.

“Pelo simples fato de adentrarem os edifícios sagrados, [os escravos] tiveram a prova cabal de sua humanidade. E esta certeza desmentia o condicionamento a que estavam submetidos, que visava fazê-los assumir uma identidade repulsiva, vilíssima, uma identidade de bestas. (...) Os escravos encontraram nos sacramentos a justificativa de sua aspiração à condição de humanos e, por conseguinte, à sua liberdade!” (Bonnassie, 1993: 45).

Manifesta-se, aqui, em seu pleno vigor, o equívoco da superestimação do grau de imposição da hegemonia em qualquer período da História – a quimera superior das elites dominantes – quando é considerada vigorosa a ponto de impor ao senso comum dos dominados as categorias insuperáveis das relações de dominação. Será razoável considerar que os escravos percebessem a si próprios como feras brutais e animalescas até que o cristianismo viesse salvar-lhes das trevas, tornando-os cônscios de sua humanidade? Se assim o foi, é de impressionar a capacidade de mobilização e de articulação violenta tantas vezes demonstrada, desde a civilização romana, pelos... rebanhos de gado! Não é difícil entender porque se nega tantas vezes aos interessados diretos qualquer participação ativa no processo de sua liberação.

A referência à união entre uma livre e um servo, tão duramente condenada nas fontes quanto, aparentemente, corrente, manifesta a seu nível a rede de solidariedades que pavimentaram o caminho da superação dos preconceitos de status entre os setores subalternos. Há que se considerar, de certo, que em tal tendência se faz manifesto o processo de homogeneização dos estatutos e das condições de vida do campesinato medieval, submetido progressivamente, ainda que sob velocidades e níveis desiguais nas várias regiões do ocidente, às relações de dependência. A par daqueles cujo estatuto pessoal os mantinha na condição estamental de escravos, devia ser elevado no período o número dos libertos, manumitidos por testamento desde, pelo menos, o Baixo Império. A legislação e as fórmulas notariais do período permitem vislumbrar a tendência de agravamento da sua condição. Desde Ervígio foi legalmente consolidada a possibilidade da revogação da liberdade concedida, além de reafirmada a determinação da submissão do escravo manumitido ao seu senhor. Àqueles que tentassem evadirem-se destes laços foi imposta a pena da perda dos bens em benefício de seus patronos, penalidade que contrariava frontalmente uma lei antiqua que reconhecia ao liberto o direito de eleger o seu senhor.

A documentação visigótica nos reservou a possibilidade – caso raro, senão único no contexto em questão – de conhecer um caso nominado de tensão manifesta na relação. Segundo os bispos reunidos no II Concílio de Sevilha, em 619, um escravo de nome Eliseo, pertencente à igreja de Cambra, ato contínuo à conquista da liberdade, e per superbiam, tentou envenenar o bispo, causando danos irreparáveis à igreja e devendo, por isso, ser castigado com a reintegração à sua antiga condição. Os bispos admoestam, pelo cânone quinze do Concílio de Mérida, em 666 (Vives, 1963: 154), os presbíteros que, ao caírem enfermos, atribuíam as suas mazelas à magia e aos malefícios realizados pelos escravos, que eram então submetidos às mais duras penalidades, dentre elas a amputação de membros. Se considerarmos a frequência com que as legislações romano-germânicas condenaram o delito da magia talvez seja possível considerá-la como uma das armas disponíveis aos oprimidos na sua luta contra os poderosos, favorecida pela crença generalizada na efetividade de tal intervenção. Parece factível, do exposto, como bem ressaltou Carlos Astarita (Astarita, 2011: 204), considerar que, quando a legislação visigótica estabelecia que o liberto podia ser acusado de injuriar, de golpear ou de acusar a seu senhor, não estejamos diante de uma simples conjectura, mas de uma efetiva expressão dos perigos e da violência intrínseca àquela conflituosa relação social.

Mas, não foram apenas os servi e os libertos a promover, com suas ações, o enfrentamento da ordem social que se impunha. Também os camponeses livres e empobrecidos fomentaram movimentos de grande repercussão no contexto dos enfrentamentos correntes no período. O “banditismo social” é um fenômeno sociológico profusamente estudado em sociedades diversas, estando o seu incremento intimamente associado aos contextos de particular efervescência social. Trata-se de uma manifestação típica de “contrassociedade” na qual predomina a origem subalterna da maioria de seus componentes. Em sendo estes, com frequência, marginalizados sociais, valem-se comumente do apoio das classes populares da sociedade, indispensável à sua manutenção. Assim, uma lei antiqua (IX, 1, 19) determina penalizações duríssimas – açoites, expropriação de bens – a todo indivíduo livre ou escravo que prestasse apoio ou ocultasse bandidos e ladrões (Zeumer, 1973: 189).

Intimamente vinculados ao habitat de bosques e florestas próximas a rotas de circulação e a centros urbanos, começavam por desafiar a ordem estabelecida pela “inversão” do estilo de vida predominante: baseavam-se na economia dos incultos, de onde partiam para complementá-la com o assédio frequente às áreas agrícolas! Podemos imaginar a atmosfera social das regiões agitadas por esta subversão. É reiterada a referência a vagabundos que povoavam os caminhos, e muitos escravos que fugiam encontravam nestes grupos sociais, em cumplicidade com ingênuos, uma opção para subsistir e opor-se às perseguições. Encontramos também, nas crônicas do período, referências, lamentavelmente abreviadas, a insurreições dificilmente vencidas.

6 - Conclusão

A violência intrínseca às insurreições e a pressão constante exercida pelas fugas consubstanciou a contribuição camponesa para a desagregação do aparato institucionalizado de poder desde o fim do mundo antigo, favorecendo o livre e vigoroso curso das forças centrípetas. Seguindo-se a perspectiva proposta por Chris Wickham, (Wickham, 1984) os grandes proprietários, cada vez menos apoiados pelo enquadramento repressivo do estado, tomaram-no progressivamente como um concorrente que limitava as suas possibilidades de exações. Desta convergência de interesses resultaram, em um mesmo movimento, um dos componentes da classe servil, o fracionamento do exercício da autoridade e a constituição progressiva dos grandes patrimônios fundiários como quadros fundamentais ao exercício das novas formas de poder, o que deu ensejo a uma das características decisivas da classe senhorial. Incapazes de combater, paralelamente e com igual denodo, os grandes proprietários e o aparato central de poder, os camponeses criaram as condições – alianças com a aristocracia e hegemonização, em seu benefício, do poder de coerção – que viriam a enfraquecer as insurreições mais amplas. De qualquer forma, “nem os conflitos são homogêneos, nem são unívocos os seus resultados; e o insucesso de dadas formas de luta é ainda uma expressão das tensões existentes” (Bernardo, 1997: 27). A sociedade feudal da Alta Idade Média decorreria, desde o século VI e até as grandes transformações que se processariam a partir do século X, do resultado conjunto destes processos.

 

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Recibido: 25 de octubre de 2015
Aceptado: 10 de noviembre de 2015
Publicado: 9 de diciembre de 2015

 

 

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