Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, diciembre 2014. ISSN 2250-5121
Universidad Nacional de La Plata. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación.
Centro de Estudios de Historia Social Europea

 

ARTICULOS / ARTICLES

 

O oponente escatológico de Daniel e o Anticristo do Apocalipse Siríaco de Daniel

 

Sara Daiane da Silva José

Universidade de Brasília (Brasil)
sara.daiane.historia@gmail.com

Cita sugerida: José, S. D. da Silva (2014). O oponente escatológico de Daniel e o Anticristo do Apocalipse Siríaco de Daniel. Sociedades Precapitalistas, 4(1). Recuperado a partir de http://www.sociedadesprecapitalistas.fahce.unlp.edu.ar/article/view/SPv04n01a02.

 

Resumo
O Apocalipse Siríaco de Daniel (Syr Apoc Dan), um apocalipse cristão do séc. VII E.C, é claramente tributário ao livro canônico de Daniel (Dn). Por sua vez, Dn forneceu a figura de um oponente escatológico que foi ressignificada no cristianismo: o Anticristo. As dimensões cósmicas do caráter malévolo do tirano opressor de Dn – a sua arrogância contra os deuses, a abominação da desolação, as conquistas militares e as perseguições aos santos, a mudança da ordem cósmica, o tempo do reinado e a morte do tirano – são consideradas neste trabalho em comparação ao Anticristo do Syr Apoc Dan.

Palavras- chave: Anticristo; Apocalipse; Siríaco; Oponente escatológico

 

The eschatological opponent of Daniel and the Antichrist of the Syriac Apocalypse of Daniel

 

Abstract
The Syriac Apocalypse of Daniel (Syr Apoc Dan), a Christian apocalypse from the seventh century of Common Era, is clearly tributary to the canonical book of Daniel (Dn). In its turn, Dn provided the figure of an eschatological opponent who was re-signified in Christianity: the Antichrist. The cosmic dimensions of the malevolent character of oppressive tyrant of Dn – his arrogance against the gods, the abomination of desolation, military conquests and persecutions of the saints, the change of the cosmic order, the time of the reign and death of the tyrant – are considered in this work compared with the Antichrist of the Syr Apoc Dan.

Keywords: Antichrist, Apocalypse, Syriac, Eschatological Opponent


 

Introdução

A memória sobre os perseguidores e o medo de tiranos contribuiu para a produção dos apocalipses no século III A.E.C. na Palestina. Os apocalipses judaicos influenciaram a base do cristianismo primitivo; o Messias esperado tornou-se o Cristo e o tirano escatológico transformou-se no Anticristo. A análise deste trabalho se baseia na compreensão da grande influência do livro de Daniel1 ao longo do tempo, que forneceu a figura de um oponente escatológico, e na ressignificação desse oponente no cristianismo. Entende-se que o Anticristo surgiu da interação de diversos componentes, dos quais o elemento “tirano opressor” é aqui destacado no Apocalipse Siríaco2 de Daniel na sua relação com Dn.3

O tirano escatológico de Dn é opressivo, ímpio e, sobretudo, um oponente arrogante. As dimensões cósmicas do seu caráter malévolo – a sua arrogância contra os deuses, a abominação da desolação, as conquistas militares e as perseguições aos santos, a mudança da ordem cósmica e o tempo do reinado e a morte do tirano – são consideradas neste trabalho em comparação ao Anticristo.

Definindo Apocalíptica

A ruptura da velha ordem política e religiosa no período do judaísmo do Segundo Templo fomentou a criação de novas formas de literatura religiosa produzidas por novos tipos de líderes religiosos com outras mensagens sobre Deus, o mundo e a história. Assim, variadas formas de literatura revelatória floresceram no mundo helenístico e entre elas estão os apocalipses produzidos pelos judeus depois de 250 A.E.C. A palavra grega apokálypsis significa, literalmente, descoberta, revelação, divulgação de fontes ocultas. O adjetivo “apocalíptico” foi popularmente associado com expectativas fanáticas milenaristas de alguns grupos que se utilizaram de passagens dos apocalipses canônicos de Dn e Ap. Em parte por isso, preconceitos foram estabelecidos contra a literatura apocalíptica e o seu estudo.

No entanto, a maioria dos trabalhos da literatura apocalíptica judaica não foi designada como apocalipse na antiguidade. O uso do termo apokálypsis como uma “etiqueta de gênero” não foi atestado no período anterior ao cristianismo e Dn não foi designado como apocalipse no período helenístico. O primeiro trabalho apresentado como apokálypsis é o Ap do NT, e ainda não está claro se a palavra denotava uma classe especial de literatura ou se foi usada de uma forma mais geral para significar revelação (Collins, 1998: 3).

Desde a publicação de Friedrich Lücke, em 1832, foi feita referência a um corpus literário denominado “apocalíptico”. Uma análise sistemática de toda literatura considerada “apocalíptica”, seja pelos textos antigos ou pelos estudiosos modernos, foi empreendida pela Society of Biblical Literature Genres Project, tendo resultado em uma publicação nomeada Semeia 144 em 1979. O propósito do Semeia 14 foi dar uma precisão para a tradicional categoria “literatura apocalíptica”, mostrando sua extensão e seus limites, postulando os traços compartilhados e os distintos de outras formas de literatura.5

O projeto Semeia 14 postula que os apocalipses históricos6 são caracterizados pela ausência de viagem ao além e pela inclusão da profecia ex eventu. A mais típica forma de revelação é a visão em sonho. O conteúdo inclui uma predição ex eventu sobre o curso da história, frequentemente dividido em um determinado número de períodos, seguidos por desventuras, desastres e revoltas, os quais são os sinais do fim, do julgamento e da salvação. A escatologia apocalíptica dos apocalipses históricos envolve especificamente a ressurreição dos mortos. Os apocalipses históricos estão usualmente relacionados a uma crise histórica (Collins 1984: 109-110).7 Ademais, os apocalipses históricos foram vistos como literatura de consolação para os crentes perseguidos nos tempos de sujeição ao poder estrangeiro (McGinn, 1994: 15).

Cerca de quinze apocalipses judaicos do período de 250 A.E.C. até 150 E.C. são revelações mediadas nas quais a mensagem é comunicada ao humano vidente por uma figura celestial – usualmente um anjo. Os apocalipses judaicos também compartilham outra forma de mediação na qual são todos pseudônimos, isto é, são atribuídos a antigos sábios ou heróis bíblicos como Enoc, Esdras, Abraão e Daniel.

Os apocalipses se apropriaram de variadas fontes e tradições, mas o novo produto foi mais do que a soma das partes, a soma das fontes; ou seja, as matrizes (oráculos; profecias pré-exílio; elementos babilônicos, persas e helenísticos) se interpenetraram e em circunstâncias específicas os apocalipses foram produzidos.

A matriz histórica e social dos oráculos tem afinidades significativas com alguns dos apocalipses tardios. O senso de alienação da ordem do presente nos oráculos é fundamental especialmente para os apocalipses históricos. Entre a tradição profética e os apocalipses também houve uma continuidade significativa, especialmente no uso do imaginário mitológico – que tem amplos antecedentes na Bíblia – uma vez que a profecia pós-exílio inegavelmente supriu-os com alguns códigos e matérias-primas (Collins, 1998: 24-25).

A questão ainda a ser respondida é se os primeiros apocalipses foram escritos na diáspora oriental, uma vez que essa possibilidade não pode ser verificada nem descartada de forma definitiva no presente. A “matéria-prima” babilônica, não proveu a matriz completa ou suficiente para o gênero apocalíptico, mas deve ser vista como um fator de contribuição significativo, especialmente na medida em que a revelação apocalíptica se assemelha à adivinhação na decodificação de sinais misteriosos (Collins, 1998: 26-28).

A importância da influência persa sobre os apocalipses foi largamente discutida em grande parte do século XX, entretanto os estudiosos se tornaram reticentes sobre o grau dessa influência pela dificuldade notória de datar a “matéria-prima” persa.8 O Bahman Yasht, por exemplo, contém todas as características de um apocalipse histórico, pois ele combina a forma apocalíptica de revelação com a periodização elaborada da história e com a escatologia. Logo, não há dúvida de que a periodização e a sucessão dos milênios, subordinada a um determinismo, é uma característica da teologia persa. O Bundahisn,9 por sua vez, contém uma narrativa de ressurreição e purificação do mundo por meio do fogo. Entretanto, mesmo se os textos persas pudessem ser seguramente datados como pertencentes ao período helenístico, o gênero apocalíptico judaico não pode ser considerado uma simples cópia, uma vez que há uma adaptação importante: o monoteísmo (Collins, 1998: 29-33).

O período helenístico trouxe fatores muito importantes. A conquista de Alexandre transformou o Oriente Próximo e o entrelaçamento das cidades helenísticas facilitou a difusão dessas ideias. Assim, muitas das mais proeminentes características dos apocalipses (pseudepigrafia, periodização da história, profecia ex eventu, viagens ao além, julgamento dos mortos etc.) envolvem a transformação da tradição bíblica no contato com novas cosmovisões.

Portanto, o gênero literário do apocalipse não é uma entidade autossuficiente e isolada. A estrutura conceitual indicada pelo gênero, que enfatiza o mundo sobrenatural e o juízo final, também pode ser encontrada em narrativas não revelatórias10 e que, portanto, não são tecnicamente apocalipses. Embora muitos estudiosos tenham trabalhado intensivamente sobre quase todos os aspectos da origem do gênero apocalíptico, muitas disputas ainda permanecem. As considerações aqui expostas trazem apenas um recorte sobre a apocalíptica para uma melhor compreensão do tema do Anticristo.

O Apocalipse Canônico de Daniel

Os caps. 1-6 de Dn não são um apocalipse, eles são historietas de corte:11 Daniel e seus três amigos a serviço de Nabucodonosor, o sonho de Nabucodonosor, a estátua composta de elementos diversos, a adoração da estátua de ouro e os três amigos de Daniel na fornalha, a loucura de Nabucodonosor, o festim de Baltazar e Daniel na cova dos leões. Os caps. 7-14 contêm as visões reveladas a Daniel: as quatro feras, o bode e o carneiro, as setenta semanas, a grande visão do tempo da cólera e do tempo do fim. Daniel, supostamente escrevendo no século VI A.E.C., descreve o futuro dos impérios da Babilônia, Média, Pérsia e de Alexandre e dos diádocos. Cada um destes é mau, mas o último é o pior. O décimo primeiro chifre da besta, uma figura bastante frequente nesse livro (Dn 7:23-27; 8:9-14; 9:27-28; 11:21-12:45), é retratado em tantos detalhes ao ponto de não restar dúvida de que o escritor descreve Antíoco IV Epífanes. O livro termina com o julgamento, anuncia o despertar dos mortos (Dn 12:2) e promete para Daniel a ressurreição.12

Muito perturbado com o que viu em seu sonho (Dn 2:1; 4:5), Daniel, cuja capacidade de interpretar os sonhos dos outros o distingue nos capítulos 1-6, tem necessidade de um intérprete nos caps. 7-14. A interpretação de Gabriel do reinado de Antíoco (Dn 8:23-25) é um bom exemplo da profecia ex eventu.

O começo do livro está em hebraico, mas no cap. 2:4b muda bruscamente para o aramaico até o fim do cap.7:28, e retorna para o hebraico. Diversas explicações foram propostas para esta dualidade na língua, todavia nenhuma foi ainda comprovada e amplamente aceita.

Sobre a autoria do livro, muito já foi discutido. As historietas de corte de Dn (caps. 1-6) foram localizadas na Babilônia e alguns estudiosos notaram a proeminência da erudição babilônica em partes de 1En. Por isso, Collins (1998, 26) entende que a possibilidade de essa literatura ser originária da diáspora oriental não pode ser completamente desconsiderada. Por outro lado, certos sinais – o ambiente neobabilônico é descrito com termos de origem persa e até mesmo os instrumentos da orquestra de Nabucodonosor possuem os nomes transcritos do grego – mostram que o autor está muito longe dos acontecimentos (Jerusalém, 1985: 1245). O autor utilizou tradições, orais ou escritas, que muito provavelmente circularam de forma independente, possivelmente em coleções menores em primeiro lugar, antes de serem adicionadas às visões, possivelmente pelos mesmos círculos que compuseram as visões. Os MMM contêm fragmentos de um ciclo de Daniel que tem semelhanças com o livro canônico. O autor, ou suas fontes, apresentou como herói dessas histórias piedosas certo Daniel (ou Dan’el) que em Ez 14:14-20 e 28:3 é citado como justo e sábio dos tempos antigos e que é também mencionado nos poemas de Râs Shamra,13 escritos no século XIV A.E.C. (Jerusalém, 1985: 1245).

Já a respeito dos caps. 7-12, há indícios mais claros sobre quando foram compostos. No centro de sua atenção encontra-se Antíoco IV Epífanes (175-164 A.E.C.), o rei selêucida que aparece em Dn ou como o pequeno chifre (Dn 7:8, 11; 8:9-12, 22-25), ou simplesmente como uma pessoa desprezível (Dn 11:21). O cap. 11 é um testemunho das guerras entre selêucidas e lágidas e tal relato não se parece com as profecias do AT, pois, apesar do estilo profético, fala de acontecimentos já ocorridos. O livro teria sido composto, portanto, durante a perseguição de Antíoco IV Epífanes e antes de sua morte,14 antes mesmo da vitória da revolta dos Macabeus entre 167-164 A.E.C.

Essa data tão recente do livro explica sua posição na Bíblia Hebraica, visto que foi admitido após a fixação do cânone dos Profetas e foi colocado, entre Ester e Esdras, no grupo heterogêneo dos “outros escritos”, que forma a última parte do cânone hebraico.15 As Bíblias grega e latina colocam Dn entre os profetas e lhe acrescentam algumas partes deuterocanônicas: o salmo de Azarias e o cântico dos três jovens, a história de Suzana e as histórias de Bel e a serpente sagrada.

Sobre o contexto babilônico descrito em Dn, o verdadeiro rei não foi Nabucodonosor, mas Nabonido (556-539 A.E.C.),16 rei neobabilônico e pai de Belsazar (o autor de Dn erroneamente afirma que Belsazar é o filho do rei Nabucodonosor). Acerca de Dario, o “Medo”, não há evidências de sua existência, porque o rei persa que derrotou Nabonido foi Ciro, o “Grande” (560-530 A.E.C.), sendo este sucedido por seu filho Cambises II (530-522 A.E.C.). Então, posteriormente, um Dario sucedeu Cambises e foi rei da Pérsia entre 522-486 A.E.C.

No período helenístico, em Dn 11:5-20, o intérprete se volta para o tempo entre a morte de Alexandre (323 A.E.C.) e o reinado de Antíoco IV (175-164 A.E.C.). O autor de 2Mc 4:1317 utiliza a oposição judaísmo e helenismo para designar, por causa da perseguição de Antíoco IV Epífanes, as comunidades judaicas que passaram a integrar oficialmente os reinos gregos, de um lado, e, de outro, um clima de “tendências helenizantes” negativamente concebidas pela maioria dos judeus (Hengel, 1974: 1). O conflito cultural resultou em um confronto armado entre 167 e 164 A.E.C., quando os judeus palestinos revoltaram-se contra Antíoco IV Epífanes devido à sua perseguição contra as práticas religiosas judaicas. Entretanto, Hengel (1974: 12) argumenta que, antes da incompatibilidade nas relações entre judaísmo e helenismo na Judeia, houve um significativo intercâmbio entre as culturas.

Desde o Iluminismo, existe certo consenso na historiografia quanto à categoria pseudepigráfica e à datação de Dn. Uriel da Costa foi um precursor da abordagem crítica de Dn no século XVII. No século XIX, houve muitas posições controversas, arrefecidas diante do comentário de James Montgomery,18 publicado em 1927, até hoje muito citado.

A descoberta dos MMM recuou, por um milênio, a datação de testemunhos de Dn, porque oito fragmentos foram encontrados. Há casos em que os pergaminhos em bom estado permitem “corrigir” o texto até então conhecido.19 Noutros casos, o mérito das leituras variantes é difícil de decidir, pois os MMM não estão livres de adições de escribas e de erros dos copistas (Maluf, 2009: 46). Para além dos MMM são encontradas versões em vários idiomas. As versões gregas seguem duas tradições textuais: a da Septuaginta (LXX) e a de Teodocião (Th).20 A versão grega inclui seções que não foram encontradas no texto hebraico e aramaico, mas estão incluídas na Bíblica Católica: duas longas orações21 acrescentadas no capítulo 3 e as histórias de Suzana e de Bel e o Dragão. Na Antiguidade Tardia, a tradução da LXX foi substituída pela tradução de Th (Maluf, 2009: 47).

Portanto, vê-se o quanto Dn é popular e bastante influente no judaísmo e no cristianismo primitivo. Alusões e citações a Dn perpassam Josefo, o NT, Justino, Orígenes, Eusébio, Jerônimo e outros pais da Igreja.

O Apocalipse Siríaco de Daniel

No século VII da era comum novos personagens, os árabes, apareceram no cenário de um Mediterrâneo dominado por gregos, romanos e persas. Antes do século VII E.C., os cristãos bizantinos22 enfrentaram grandes dificuldades (como quando guerrearam contra os persas e os hunos) e os desastres militares intrigaram os bizantinos. Até mesmo Procópio23 foi forçado a reconhecer que era incapaz de explicar a queda de Antioquia para os persas em 540 E.C. Nessa mesma circunstância, a peste bubônica em 542 E.C. também foi um fator de mudança e grandes preocupações (Olster, 2003: 260-262).

Entretanto, a dimensão dessas derrotas e desastres foi menor que as do século VII, pois além das dificuldades econômicas no Império Bizantino, um episódio muito importante pelo seu impacto na literatura apocalíptica foi, sem dúvida, a guerra de Heráclio contra o Império Sassânida. No início da segunda década do século VII E.C., a conquista persa havia se estendido para todo o Levante. Os bizantinos foram capazes de retirar os persas de Cesareia, mas fracassaram em sua ofensiva contra a Armênia e a Síria. Em 614 E.C., Jerusalém caiu nas mãos do inimigo, que tomou a Santa Cruz e a levou para sua capital, Ctesiphon. Em 617 E.C., os persas atingiram o Bósforo, e em 619 E.C., conquistaram o Egito (Ubierna, 2008: 4-5).

Os acontecimentos da guerra persa, que terminou com o retorno triunfal de Heráclio com a Santa Cruz, provocaram um forte impacto em todo o território onde as operações ocorreram. Tal impacto e suas consequências foram sentidos ao longo dos séculos VII e VIII E.C. A partir daí, um grande número de tendências, que haviam começado a ser delineadas muito tempo antes, atingiu sua realização nesse período.

Todavia, não foi apenas o inimigo militar que atacou as muralhas de Bizâncio no século VII E.C.; a contenda interna religiosa também foi uma praga entre eles. Desejando transmitir uma aparência de acordo e uniformidade do credo para o seu reino dividido pela guerra, o imperador Heráclio e o patriarca Siergo tentaram impor uma unidade. Isso deslocou a lealdade de algumas províncias e produziu um debate furioso de mais de meio século (especialmente de 630 a 680 E.C.) e resultou numa enxurrada de sínodos. Em resumo, as calamidades desse tempo trouxeram diversas mudanças na configuração das fronteiras, da política, das doutrinas cristãs, da literatura etc. Desse modo, as guerras bizantinas começaram a ser cada vez mais imbuídas de um significado religioso. É certo que, com os hunos, os ávaros, os persas e, posteriormente, os árabes nas muralhas de Constantinopla, os bizantinos perceberam-se a si mesmos não mais como cidadãos de um império do mundo, mas como povo escolhido rodeado por nações pagãs hostis (Palmer, 1993: xix-xxvii).

A partir do século VII E.C., essa identificação da guerra ou da perseguição como uma oposição entre cristãos e pagãos em vez de romanos e bárbaros intensificou-se e a guerra tornou-se cada vez mais associada ao exercício do cristianismo do que ao exercício do poder romano. Logo, diante desse contexto de invasões e conflitos, o século VII E.C. se colocou como o período formativo da apocalíptica, e dele até o século IX E.C. se constituiu a era de ouro dos apocalipses bizantinos quando então os textos formativos e os modelos foram criados (Olster, 2003: 263).

É nesse contexto da primeira metade do século VII E.C. que A Revelação de Daniel, o profeta, na terra da Pérsia e de Elam, ou simplesmente, o Apocalipse Siríaco de Daniel foi provavelmente escrito dentro do Império Bizantino por algum cristão siríaco e melquita. O manuscrito – MS Syr 42 da Universidade de Harvard – editado, publicado e traduzido por Slabczyk (2000) para o esperanto, sob o título Apokalipso de Danielo Profeto en la Lando Persio kaj Elamo, foi posteriormente publicado por Henze (2001) em edição crítica de língua inglesa.

Como sugerido pelo título, o Syr Apoc Dan tem uma clara relação com Dn, pois também tem um personagem principal chamado Daniel que retoma algumas das mais importantes visões do personagem bíblico. Ademais, diferentemente da maioria da literatura pseudepigráfica daniélica tardia, o Syr Apoc Dan preservou duas partes como as do livro canônico. A primeira parte (caps. 1-13) é narrativa, escrita em prosa, em que Daniel conta, em primeira pessoa, os acontecimentos da sua trajetória da Babilônia até a Pérsia. A segunda parte (caps. 14-40) está escrita em verso e trata das visões escatológicas de Daniel.

A narrativa do Syr Apoc Dan inicia-se com a afirmação de Daniel de que as profecias relatadas nesse texto foram reveladas pelo Espírito Santo e que elas dão continuidade às que ele teve durante o reinado de Nabucodonosor, rei da Babilônia. Daniel descreve a pilhagem de Nabucodonosor aos tesouros do Templo de Salomão e relembra algumas visões presentes em Dn. O texto do Syr Apoc Dan prossegue relatando a conquista da Babilônia por Ciro e o assassinato de Ciro por Gaumata, o “Mago”,24 que posteriormente também é assassinado por seus nobres.

Dario assume, então, o trono da Pérsia e obriga Daniel a revelar o lugar onde estavam os tesouros do Templo. Como castigo pela pretensão de tomar posse do tesouro, um anjo tira a visão de Dario e lhe revela que, para ter a cura, o rei deveria ir a Jerusalém e adorar no Templo do Senhor. Dario e Daniel vão a Jerusalém, onde Dario é batizado no tanque de Siloé e, curado, adora a Deus.

Aqui se inicia a segunda parte do Syr Apoc Dan. Escrita em versos, ela é composta na terceira pessoa e trata das visões escatológicas de Daniel.

A revolta do “Povo do Norte” marca o início da seção escatológica no Syr Apoc Dan. Essa rebelião é acompanhada por vários sinais de grande calamidade. A desordem na natureza é seguida de uma intensa corrupção moral.25 O texto do Syr Apoc Dan prossegue narrando o nascimento de uma criança da tribo de Levi que é o próprio Anticristo. Ele seduz os habitantes do mundo por meio de milagres e sinais e persegue os cristãos. Em conjunto com o Anticristo, uma multidão de Agogitas e Magogitas toma o controle do mundo. Os anjos o atingem com uma espada de fogo dividindo-o em duas partes que são lançadas no mar.

Em seguida, o Senhor dos Exércitos desce em majestade e poder numa carruagem de água benta acompanhado por seus anjos de guerra. Então, o grande Messias assenta-se no trono dos justos na Nova Jerusalém para julgar. Ao final do Syr Apoc Dan, há uma adição tardia na qual o autor pede para ficar à direita de Cristo entre os santos e seus amigos. O autor conclui dizendo que ali acaba a assombrosa revelação ao profeta Daniel na terra da Pérsia e Elam.

No Syr Apoc Dan ecoam várias tradições de outros textos tanto judaicos quanto cristãos, pois essas tradições continuaram a exercer influência na literatura siríaca até o período da invasão islâmica (Brock, 1979: 212). A literatura siríaca foi influenciada pela tradição judaica tanto pela Peshitta quanto pela pseudepigrafia e literatura apócrifa. Nesse contexto, a tradução de Henze do Syr Apoc Dan, segundo Brock (2006: 17), obscurece certo número de palavras e características provenientes da literatura Hekhalot26 e do Targum da Palestina,27 por exemplo. Henze assume que o autor conhece o Ap e compara várias passagens do Syr Apoc Dan ao Ap. Entretanto, os apocalipses bizantinos tiveram como fonte de inspiração maior as profecias de Daniel sobre as setenta semanas e os quatro impérios mundiais e as profecias de Ez sobre Gog e Magog em vez do Ap. Isso não significa que os bizantinos não tivessem conhecimento do Ap, mas eles tinham certas suspeitas em relação à sua autoria (Olster, 2003: 256). Desse modo, para Brock (2006: 17), parece mais incerto ainda afirmar que o autor do Syr Apoc Dan tenha utilizado passagens do Ap para compor seu texto.

Os apocalipses bizantinos demonstram grande sofisticação literária ao incorporarem, com frequência, elementos de outros gêneros, como homilias e literatura hagiográfica. A imagem dos “Portões do Norte” é um tópico bem conhecido da Lenda de Alexandre, o Grande28 e esta, provavelmente, interferiu na literatura apocalíptica siríaca do século VII E.C. (Henze, 2001: 13). De acordo com a narrativa popular, Alexandre construiu uma muralha ou um portão no Cáucaso para evitar que as nações de Gog e Magog29 assolassem a terra antes do fim dos tempos. A primeira menção a essa lenda é encontrada em Josefo.30 Para Paul Alexander (1985: 185-192), então, é de Ez que os apocalipses bizantinos derivam a noção de uma invasão e destruição das nações pela vontade de Deus.

Geralmente, a data de composição dos apocalipses medievais está relacionada ao último evento histórico que eles aludem na passagem da primeira parte, a narrativa, para a segunda parte, a escatológica (Alexander, 1968: 999). Entretanto, o Syr Apoc Dan se diferencia dos outros apocalipses pela completa ausência de revisões históricas explícitas na forma de profecias ex eventu. Até existem nomes específicos de pessoas e lugares – como a Montanha de Zilai – mas estas não são alusões reconhecíveis para eventos históricos concretos e, portanto, dificultam a determinação exata da data de composição da obra. Ou seja, é um apocalipse histórico que não retrata seu contexto histórico. Não há nenhum sinal das mudanças da época nem das catástrofes presentes no século VII E.C. Para Cardinal (2012: 121-122), a localização geral e a ausência de marco cronológico fazem dele um texto flutuante no tempo e indefinido no espaço. Ele acrescenta, ainda, que a primeira parte é justaposta à segunda e que elas não compartilham necessariamente a mesma origem. Além disso, Cardinal postula que outra razão para o Syr Apoc Dan não entrar nas categorias de subgêneros apocalípticos formulada por Collins (1984: 4-9) é a ausência do intérprete angélico.31

O angelus interpres32 geralmente interpreta uma visão ou um sonho para alguém e pode ter a função de guiar ou revelar durante a experiência mística ou visionária.33 A figura do intérprete angélico primeiro aparece nos livros proféticos mais tardios do AT, como Ez e Zc, depois noutros apocalipses judaicos34 e no NT ele aparece somente no Ap. Entretanto, o Syr Apoc Dan não fornece nenhuma indicação de que o conhecimento do futuro – a visão escatológica – foi intermediado por um angelus interpres. Na verdade, depois da seção introdutória, Daniel desaparece completamente da narrativa, não é citado como a figura que interage com um anjo mediador, nem relata ao leitor o que viu ou o que lhe foi revelado.

Pierre Cardinal (2012: 156) não faz uma abordagem tradicional do apocalipse siríaco como uma obra literária em sua relação com o contexto, com os valores, as crenças e as ideologias da sociedade do século VII E.C. Ao contrário, Cardinal analisa o estatuto propriamente retórico do texto literário, um discurso que intenta a produção de certo efeito no público para o estabelecimento de formas de ação. A organização interna da narrativa é estruturada em dois níveis correspondentes a duas escalas de tempo. O que está acontecendo no nível da realidade humana é um reflexo da questão mais ampla, cujo resultado irá ocorrer no final da história do mundo.

Ao contrário de Cardinal, a abordagem de Alexander Golitzin (2011: 68) sobre o Syr Apoc Dan e seu autor é tradicional: um monge, escrevendo para outros monges, lembra aos seus companheiros o significado de seus votos. Para tal afirmativa, Golitzin se baseia na ausência de qualquer tipo de condenação na única linha do Syr Apoc Dan que trata do julgamento final, enquanto o trabalho no todo não parece estar preocupado com quem será considerado culpado ou deixado à própria sorte. Por isso, Golitzin presume que o local de origem é um monastério, e seu autor, um monge que parafraseia Dn, também um asceta.

Como os escritores dos apocalipses da antiguidade, o escritor do Syr Apoc Dan também se preocupa com o caos à sua porta, que pode perturbar ou até mesmo derrubar a fé de seus leitores. A pior coisa que pode acontecer a um monge na busca de sua vocação é ser vítima dos alarmes e agitações do mundo que perece. Este é exatamente o perigo que Golitzin entende que o autor do Syr Apoc Dan quer enfrentar e contrariar. Se esse monge é uma figura de liderança em seu mosteiro – talvez até mesmo o seu abade – ele vive em meio ao caos da primeira metade do século VII E.C. Alarmes e rumores estão ao redor, aparentemente horrores sem fim ou precedentes: cercos de cidades, fome, peste, inundações, assassinatos em massa, a maré esmagadora da vitória de uma fé estranha (o islamismo) que, aos olhos de tal monge (que provavelmente vivia entre 630 e 640 E.C.), pode ter parecido como uma distorção demoníaca de seu cristianismo. Talvez as catástrofes terrestres e celestes, a convulsão cósmica e o terror que ele descreve em seu apocalipse de “ais”, sejam para lembrar seus leitores de que os acontecimentos futuros, ao contrário das atuais dificuldades que os cercam, não serão tão pequenos como a queda e a ascensão dos impérios humanos. A resposta adequada não é a ansiedade, nem especulações, nem, pior ainda, as visões. Fazê-lo é abrir a porta para o Anticristo e seus demônios (Golitzin, 2011: 94 -95).

Sobre o Anticristo

A especulação ocidental tardia, derivada do Ap e dos evangelhos, teve um papel importante no desenvolvimento da figura do Anticristo, mas foi nas profecias bizantinas que ele adquiriu personalidade e uma história mais elaborada (Alexander, 1985: 4). A palavra Anticristo aparece no NT em 1Jo 2:18 e 2Jo. A figura que muitas vezes se opõe a Cristo é chamada por uma série de circunlóquios, como “abominação da desolação” em Mt 24:15 ou a “Besta do abismo” em Ap 11:7. Porém, de acordo com Alexander (1985, 193), no início do período bizantino, o termo “Anticristo” já estava bem estabelecido.

A lenda do Anticristo surgiu, segundo a análise de Bousset (1896: xii), por meio da projeção do monstro do caos em uma segunda luta cosmológica – projeção da luta inicial presente em diversos mitos de criação – no fim dos tempos entre Deus, o Criador, e as forças do mal. Por outro lado, Charles (1920: 76-87) afirma que o Anticristo surgiu da interação de três componentes: a figura de um inimigo escatológico baseado em eventos políticos, como o perseguidor Antíoco IV Epífanes, a figura mítica do perverso anjo Belial, e o crescimento da lenda de Nero Redivivus. Para Adela Collins (2001), as simbologias presentes nas narrativas míticas ajudaram os judeus e os cristãos primitivos a entenderem os acontecimentos tanto como eventos históricos quanto como histórias míticas reformadas.

Os autores dos apocalipses utilizaram tradições mitológicas, especialmente aquelas relacionadas ao “mito de combate” do Antigo Oriente Próximo, a narrativa da luta entre um grande deus e o monstro do caos no tempo da criação ou da formação do mundo. Entretanto, os apocalipses não repetiram os mitos puramente; eles adaptaram, expandiram e os transformaram de modos variados.35 O “mito de combate” esteve espalhado no primeiro século de várias formas e em várias versões regionais: Hórus, Osíris e Seth no Egito; Tempestade e llluykankas entre as tradições hititas; Baal e Yam em tradições cananeias e ugaríticas; Marduk e Tiamat entre os acádios (Miranda, 2005: 4).

Outro componente desse complexo é a figura do falso Messias para os judeus, e do falso Cristo para os cristãos. A origem dela é encontrada nas crenças apocalípticas e messiânicas do período do Segundo Templo Judaico (século III A.E.C. até 70 E.C.). Alguns grupos acreditavam que um Messias viria resgatar Israel das forças do mal e, por conseguinte, haveria grande oposição a esse Messias. A história do Anticristo atingiu seu completo desenvolvimento apenas quando alguns judeus do primeiro século da era comum tornaram-se seguidores de Jesus de Nazaré, o Cristo. O próprio Cristo enfrentou oposição enquanto esteve na Terra, e seus seguidores também experimentaram diversas ondas de perseguição ao longo dos séculos. Assim, os cristãos também começaram a acreditar que o retorno do Filho de Deus encontraria o epítome da oposição humana para impedir a plena realização do reino de Cristo na Terra.

Sobre o Anjo de Belial, Jenks (1991: 183) menciona a inferência de Bousset de que Paulo, em 2Cor 6:15, conhece o nome do Anticristo, que é Belial. Mas Jenks mostrou ser esse um erro, pois nos MMM, Belial é a figura do Diabo e não do Anticristo. A lenda do Nero Redivivus se tornou bastante popular a partir do século I E.C. Em Ascensão de Isaías 4.4, o grande anjo de Belial vem na forma de Nero, que age e fala como o Cristo. Nos Or. Sib. 5, enquanto Roma e Nero são avisados sobre o julgamento futuro, Nero declara a si mesmo igual a Deus36 e se volta contra o povo judeu37 (Hill, 1995: 99).

Na patrística, a primeira menção ao oponente escatológico está em Justino, que parece pensar que o oponente já nasceu. É necessário destacar que Justino nunca usou o título Anticristo para essa figura. Irineu38 parece ser o primeiro a usar esse nome (Hill, 1995: 100). Na primeira metade do século III E.C., Hipólito de Roma compôs uma obra intitulada Demonstração das Sagradas Escrituras concernente a Cristo e ao Anticristo. Sobre essa obra, Bousset (1896: 68-72, 82, 160) menciona a existência de um apocalipse perdido acerca do Anticristo, que tinha o nome de Apocalipse de Daniel. Mais interessante ainda é a possibilidade levantada por Bousset de esse apocalipse perdido ter sido usado como uma fonte por Hipólito de Roma.

A natureza humana ou sobrenatural do Anticristo já foi alvo de inúmeras discussões. A partir do século V E.C., os Pais da Igreja, tanto no ocidente quanto no oriente, insistiram que o Anticristo tinha natureza humana e não poderia ser identificado com o Diabo. O conceito do Anticristo como filho do Diabo, ou o próprio Diabo, contrasta vividamente com a noção expressa na maioria dos apocalipses bizantinos de que o Anticristo é um ser humano (Alexander, 1985: 200). Ou seja, embora boa parte da história do Anticristo esteja entrelaçada com o adversário sobre-humano espiritual de Deus, ele difere do Diabo ao ser concebido primeiramente como um agente humano.39 Logo, a crença no Anticristo é a da relação extrema entre a agência humana e o mal, especialmente da possibilidade de um ser humano completamente mau (McGinn, 1994: 2).

As expectativas da patrística eram de que o Anticristo fosse judeu, assim ele cumpriria as profecias “nacionalistas” do AT e reuniria os dispersos de Israel. Ele traria o fim da dominação romana sobre os judeus, restabeleceria a nação na Terra e restauraria o templo e o culto (Hill, 1995: 109). Mas a primeira menção explícita de um Anticristo judeu está nos escritos de Irineu:40 “ele virá da tribo de Dã, mas reivindicará o poder romano”. O Anticristo da tribo de Dã faz sua “primeira” aparição em Irineu, mas é em Hipólito que ele encontra seu meticuloso e eloquente biógrafo.41

O ponente escatológico de Daniel e o Anticristo do Apocalipse Siríaco de Daniel

A análise aqui se baseia no entendimento da grande influência do livro de Dn ao longo dos séculos, que forneceu a figura de um oponente escatológico, e na ressignificação desse oponente na tradição cristã. Portanto, os paralelos aqui feitos fogem ao anacronismo porque é clara tanto a influência direta (do autor do Syr Apoc Dan, que certamente tinha profundo conhecimento de Dn) quanto a indireta (por exemplo, como a partir do Ap).42

O oponente escatológico retratado em Dn, baseado em Antíoco IV Epífanes, é opressivo, ímpio e, sobretudo, um tirano arrogante cujo caráter malévolo tem dimensões cósmicas. Aqui serão considerados a sua arrogância contra os deuses, a abominação da desolação, as conquistas militares e as perseguições aos santos, a mudança da ordem cósmica, o tempo do reinado e a morte do tirano.

Em Dn 11:36-39, o tirano se caracteriza pelo seu desprezo aos deuses. É dito que ele se levantará contra os deuses e dirá coisas horrendas contra o Deus dos deuses, e que ele considerará a si mesmo maior que os deuses. Peerbolte (1996: 236) ressalta que nas moedas com a imagem de Antíoco não havia o retrato tradicional do diadema selêucida, mas um halo com uma coroa de louro parecida com a usada para Zeus. Sua altivez é indicativa do autor de que Antíoco pensava ser grande em sua própria mente, sendo popular a representação de Antíoco IV Epífanes como Antíoco “Epímanes”, como informa Políbio, trocando o seu epíteto de “manifesto por deus” para “louco”, em paralelo com Nabucodonosor.43 No cap. 22 do Syr Apoc Dan, o Anticristo também se auto proclamará divino, dizendo: “Eu sou o Cristo!”.

Antíoco também profanou o templo (2Mac 5:23-27), aboliu as ofertas diárias (Dn 9:27, 1Mac 1:54) e criou a abominação da desolação. “Tropas enviadas por ele virão profanar o Santuário-cidadela e abolirão o sacrifício perpétuo, ali introduzindo a abominação da desolação” (Dn 11:31). A abominação da desolação mencionada em Dn 8:13, 9:27 e 12:11 é lida como a profanação do templo em Jerusalém, que foi dedicado a Zeus por Antíoco, evento retratado em 2Mac 6:1-2 e 1Mac 1:54.44 Também em 1Mac 1:42-43 é relatada a tentativa de Antíoco de mudar os costumes. Ele tentou seduzir (1Mac 2:17-22) alguns judeus favoráveis ao helenismo, mas foi contestado por fiéis. Um dos grupos resistentes é referido em Dn 11:32-35 e, ao contrário dos Macabeus, os sábios45 não parecem ter propagado o uso da violência. O Anticristo do Syr Apoc Dan, cap. 24, também afeta o culto daqueles que vivem em Sião e dos estrangeiros de Jerusalém.

O oponente escatológico de Dn ainda perturba a ordem do cosmos estabelecida por Deus. A mudança das estações pode se referir a uma ação de Antíoco III, que, depois de ter invadido a Palestina, derrotou o exército de Ptolomeu V no Paneion em 200 A.E.C. Nessa ocasião, Antíoco mudou o calendário do ano lunar egípcio para o ano solar selêucida. Para Peerbolte (1996: 230), mudar o calendário implica mudar as datas das festas e rituais. Por conseguinte, significa também mudar as leis religiosas. Mas se essa passagem se refere ou não a Antíoco III, a mudança das estações e da lei deveria, no presente contexto, ser interpretada, sem dúvida, como uma desordem e uma forma de opressão religiosa.

Quando a verdade (emet ou ‘mt) em Dn 8:12 é jogada por terra, pode ser lida como um equivalente de Ma’at, a deusa egípcia da verdade, conhecida por ser guardiã dos princípios do mundo, mais especificamente dos princípios que salvaguardam o equilíbrio e a ordem no mundo (Peerbolte, 1996: 231). O pequeno chifre cresceu até alcançar os céus, mas sua rebelião é contra o próprio Deus e afeta a ordem cósmica. No Syr Apoc Dan, a ordem do cosmos é claramente afetada no cap. 23: o Anticristo irá impedir o nascer do sol para que ele não possa atravessar os céus; ele dirá para a lua que fique parada; ele esticará suas mãos para o firmamento e segurará a chuva e o orvalho; ele não permitirá que as nuvens do firmamento se movam; ele comandará os ventos para que não soprem; ele fará com que os rios retornem em seu fluxo e os animais viverão amedrontados.

Antíoco subiu ao poder eliminando aqueles que estavam em seu caminho e incluindo o “príncipe da Aliança (Dn 11:22), provavelmente uma referência ao assassinato do sumo sacerdote Onias III (Dn 9:26, 2Mac 4:34-35). Dn 11:25-28 é o relato de como, em 170 A.E.C., Antíoco invadiu o Egito e, a caminho de casa, saqueou o templo em Jerusalém (1Mac 1:20, 2Mac 5:11-21). Em 168 A.E.C., Antíoco voltou-se novamente contra o Egito, mas dessa vez foi repelido pelos navios de Quitim46 e, frustrado, virou-se contra o Templo de Jerusalém. No Syr Apoc Dan, o Anticristo será conduzido diante das suas tropas e do exército em campanha (cap. 23) e com ele estarão carros de fogo e acampamentos de guerra, que têm cavalos mais velozes que os leopardos e os seus mensageiros mais audazes do que os lobos. Com ele virão muitos guardas e anjos poderosos, pois ele estará com o exército de Mebagbel e uma multidão de Agogitas e Magogitas e eles tomarão o controle do mundo, a extensão da terra, para marchar de mar a mar e do fim de um céu ao fim de outro céu (cap. 22).

Todavia, o reinado do oponente escatológico não durará perpetuamente. Além de Dn 12: 7, Dn 8:13-14 afirma:

“Então ouvi um santo a falar. E outro santo disse àquele que falava: “Até quando irá a visão do sacrifício perpétuo, da desolação da iniquidade, e do Santuário e da legião calcados aos pés?” E ele respondeu-lhe: “Até duas mil e trezentas tardes e manhãs. Então será feita justiça ao Santuário”.

O fato de o reino do pequeno chifre ser imediatamente seguido de sua derrota implica necessariamente que o seu reino é limitado, “um tempo, tempos e metade de um tempo”.47 Essa designação é vaga e pode se referir a qualquer período, sendo amplamente reinterpretada (como no Ap) e alvo de muitas especulações no decorrer dos séculos. O anjo Gabriel explica que a visão é para o tempo do fim48 e isso poderia significar que a derrota de Antíoco inaugura o fim da história em geral, mas é mais provável que o tempo do fim se refira especificamente ao fim do reinado opressivo de Antíoco. O objetivo da visão, então, seria o de oferecer à comunidade perseguida a certeza de que o destino de Antíoco havia sido selado no céu (Henze, 2010: 15). Ou seja, o autor usa uma técnica para consolar sua audiência, retratando a situação dela como estágio necessário da história e o terror experimentado por ela como o clímax da maldade que irá preceder a intervenção final de Deus na história. No Syr Apoc Dan, o reinado do Anticristo também tem um período determinado com referência clara a Dn no cap. 24: “O seu reino durará por um tempo, tempos e metade de um tempo, que são três anos e seis meses”.

Além de Dn 11:45, Dn 8:23-25 também menciona a morte do tirano opressor:

“E no fim desses reinos, quando chegarem ao cúmulo os seus pecados, levantar-se-á um rei de olhar arrogante, capaz de penetrar os enigmas. Seu poder crescerá em força, mas não por sua própria força; ele tramará coisas inauditas e prosperará em suas empresas, arruinando poderosos e o próprio povo dos santos. Por sua habilidade a perfídia terá êxito em suas mãos. Ele se exaltará em seu coração e, surpreendendo-os, destruirá a muitos. Opor-se-á mesmo ao Príncipe dos príncipes mas, sem que mão humana interfira, será esmagado”.

Esse evento é apresentado imediatamente antes da intervenção final de Deus na história, pois o arcanjo Miguel aparece e, no clímax da angústia, o povo de Israel é salvo. O autor bíblico também prevê que Antíoco morrerá em uma batalha cataclísmica no tempo do fim.49 A imprecisão das previsões indica que o autor compunha enquanto Antíoco ainda estava vivo e outros relatos sobre o fim de Antíoco são encontrados em 1Mac 6:1-17, 2Mac 1:14 -16, 2Mac 9:1-29 e Josefo.50 É provável que a menção à sua morte em Dn 8:25 a esteja atribuindo a Deus e não a uma doença fatal, por exemplo (Peerbolte, 1996: 234). No Syr Apoc Dan, cap. 24, o Anticristo é morto pelo “anjo da reconciliação” e se assemelha bastante ao arcanjo Miguel, patrono de Israel (Dn 10: 13, 21; 12:1), e, de acordo com a versão latina da Sibila Tiburtina, Miguel matará o Anticristo (McGinn, 1998: 50).

Conclusão

O autor do Syr Apoc Dan conhece os livros sagrados muito bem, e Dn especialmente, como parece ter conhecido uma grande quantidade de literatura apócrifa e pseudepigrafia. Ele conhece tão bem essa matéria-prima que é capaz de reproduzir o tom e qualidade para caracterizar a obra como vinda da antiguidade. O autor é plenamente capaz de utilizar-se dessas matrizes literárias diferentes para o seu principal propósito, que é lembrar seus leitores sobre a prossecução da sua vocação.

Portanto, o reinado do tirano é apresentado como excedendo os limites humanos, pois ele dirige suas ações contra o Deus que estabeleceu a ordem cósmica e seu povo. Em face do exposto, reafirmo a posição de Peerbolte (1996: 237) de que a descrição detalhada do tirano escatológico tornaria os leitores capazes de identificá-lo e de ver sua morte e a ação de Deus na história. Talvez as catástrofes terrestres e celestes, a convulsão cósmica e o terror descritos pelo autor do Syr Apoc Dan lembrem seus leitores de que as dificuldades do século VII E.C. são pequenas em relação ao fim. Ao mesmo tempo, permite aos leitores a identificação de seu inimigo principal e seu consolo, mostrando a ação de Deus na história ao determinar o tempo e o fim do Anticristo.

 
Notas

1 As abreviações aqui usadas: Apocalipse (Ap); Oráculos Sibilinos (Or. Sib.); 1 e 2 Epístola de João (1Jo e 2Jo); Mateus (Mt); Jeremias (Jr); Gênesis (Gn) ; Deuteronômio (Dt); Isaías (Is); Ezequiel (Ez); Daniel (Dn); Juízes (Jz); 2 Baruc (2Br); 4 Esdras (4Esd); Salmos (Sl); 1 Enoc (1En); Filipenses (Fl); Efésios (Ef); Apocalipse Siríaco de Daniel (Syr Apoc Dan); Manuscritos do Mar Morto (MMM); Antigo Testamento (AT); Novo Testamento (NT); Zacarias (Zc); Septuaginta (LXX); Teodocião (Th); Números (Nm); Contra as Heresias (CH); 1 e 2 Macabeus (1Mc e 2Mc); Habacuc (Hab).

2 O siríaco – uma forma de aramaico –surgiu como um dialeto independente no início do século I A.E.C. Seu primeiro testemunho é uma inscrição pagã datada do século VI E.C., a partir de Birecik no rio Eufrates, cerca de 45km a oeste de Edessa (cujo nome moderno, Urfa, é derivado do siríaco Urhay), o centro cultural da literatura siríaca. Edessa, a capital do reino de Osroene, foi fundada cerca de 132 A.E.C. Esse dialeto começou a ser adotado como língua literária dos cristãos falantes de aramaico por toda a Mesopotâmia, em parte pelo prestígio desfrutado por Edessa. A literatura siríaca foi produzida em torno de Edessa por pagãos, gnósticos, judeus e cristãos. Mais de 60 inscrições – a maioria pagã – chegaram até nós e a literatura dos primeiros três séculos consiste principalmente de textos anônimos cuja data e origem não podem ser estabelecidas. Até o ano de 200 E.C., os livros do AT foram traduzidos com base no texto hebraico mais próximo ao texto Massorético do que ao da Septuaginta. A tradução siríaca é conhecida pelo nome de Peshitta. Embora a escrita siríaca clássica, na forma fixada durante o século IV E.C., tenha permanecido a mesma, surgiram duas pronúncias diferentes, a oriental e a ocidental. A oriental, que é mais arcaica, passou a ser usada pela Igreja do Oriente no que é hoje o Iraque e o Irã. A ocidental é empregada na Igreja Maronita e na tradição siríaca ortodoxa na moderna Síria e Turquia (Brock, 1980). O siríaco é atualmente a língua litúrgica de algumas comunidades cristãs, tais como: a Igreja Ortodoxa Siríaca, a Igreja Assíria do Oriente, a Igreja Siríaca Maronita, a Igreja Católica Caldeia, a Igreja Católica Siríaca e as várias igrejas dos cristãos siríacos na Índia.

3 Os 12 capítulos que compõe Dn na Bíblia Hebraica também estão presentes na Bíblia de Jerusalém (versão utilizada nesse trabalho por ser reconhecida no meio acadêmico como uma das melhores traduções do hebraico para o português, ainda que nela Dn tenha 14 capítulos, sendo os dois últimos ausentes na Bíblia Hebraica). Portanto, esses 12 capítulos serão aqui mencionados como Daniel canônico pelas razões supracitadas.

4 Há outras teorias sobre os apocalipses que discordam do Semeia 14. Autores como Ed Parish Sanders (1985), Paolo Sacchi (1996) e Klaus Koch (1972) são algumas referências de oposição.

5 O projeto Semeia 14 define apocalipse como: “um gênero de literatura de revelação com uma estrutura narrativa, na qual a revelação é mediada por um ser de outro mundo para um receptor humano, revelando uma realidade transcendente que é simultaneamente temporal, na medida em que prevê a salvação escatológica, e espacial, na medida em que envolve uma outra [realidade], o mundo sobrenatural” (Collins, 1979: 9, tradução nossa).

6 Os apocalipses de viagem ao além reportam a viagem do visionário aos céus ou ao submundo. A viagem envolve tipicamente uma série numerada de céus (em textos judaicos e cristãos), visões da morada dos mortos e, frequentemente, a visão de Deus; os anjos servem como guias e intérpretes na viagem. As raízes desse gênero podem ser encontradas nos relatos de sonhos do Antigo Oriente Próximo, onde as viagens em sonho para o submundo são tão antigas quanto a epopeia de Gilgamesh. Relatos de viagens ao além também foram largamente conhecidos no mundo greco-romano e na literatura persa (Collins, 1984: 115).

7 Por exemplo, a perseguição na era dos Macabeus ou a queda de Jerusalém. Dn 7-12; 1 En 83-90; 4Esd; 2Br.

8 Os principais escritos do Zoroastrismo (Avesta, Gathas, Bahman Yasht, Bundahisn) pertencem a diversos períodos da dinastia Sassânida (221-642 E.C.). A maioria desse material antigo está preservada em livros do século IX escritos em pahlavi. A dificuldade está em determinar o quanto essa literatura em pahlavi preserva material de antes da era comum. Outro testemunho do pensamento apocalíptico persa que pode ser datado antes da era comum é o Oráculo de Histaspes (do I ou II século A.E.C.), que não é um apocalipse na forma, entretanto traz evidências importantes da escatologia persa.

9 Não é certo que o completo esquema da história e escatologia encontrado no Bundahisn já estivesse totalmente desenvolvido no período helenístico.

10 Collins (1998: 9) cita, por exemplo, o Rolo da Guerra dos MMM.

11 Historietas de corte é uma categoria baseada mais no cenário do que na forma ou conteúdo e é compatível com vários gêneros (novela, lenda etc.). Historietas de corte do Antigo Oriente Próximo têm, entretanto, roteiros estereotipados (Collins, 1984: 106).

12 Ap 20:13 desenvolve a ideia de ressurreição geral, que, em Dn 12:3, não abrangia toda a coletividade (“muitos”, não todos).

13 Râs Shamra é o nome moderno de Ugarit, uma cidade portuária da antiguidade localizada na costa mediterrânea do norte da Síria. Em 1928, em Râs Shamra, foi encontrado o Corpus Tablettes Alphabetiques [CTA] 17–19, que contém a “Epopéia de Aqhat”. Nesse poema do séc. XIV A.E.C., Daniel, um piedoso rei de Canaã, pede ao deus Baal que sua esposa Danatay seja fértil. O casal é atendido por Baal e tem um filho chamado Aqhat.

14 Mas o autor erra em sua previsão da morte do tirano em 164 A.E.C. (ver também Dn 11:45), quando afirma que Antíoco não morreu por mãos humanas (Dn 8:25; uma alusão a Zc 4:6).Tal erro é útil para o intérprete moderno, uma vez que mostra que a visão foi escrita enquanto Antíoco ainda estava vivo (Henze, 2010: 15).

15 De acordo com Klaus Koch, as convenções que governaram a interpretação de alguns símbolos presentes em Dn são, entre judeus e cristãos do período intertestamentário, o elemento principal da canonização do livro por ambas as comunidades (Koch, 2001: 421). É pouco provável, em virtude dessas dissonâncias, que Dn tenha sido escrito por um único autor e em um só tempo. Entretanto, é notável a argumentação de Henry Rowley (1980, 50) a favor da unidade de composição do livro.

16 Nabonido passou dez anos em Teima, um oásis na península arábica, enquanto seu filho Belsazar atuou como regente. Henze (2010: 8) afirma que essa hipótese foi então corroborada com a descoberta da “Oração de Nabonido” (4Q242), um texto fragmentário dos MMM.

17 1Mc possivelmente foi escrito por um judeu palestino a partir do ano 134 A.E.C., no começo do governo de João Hircano, porém antes da tomada de Jerusalém por Pompeu, em 63 A.E.C. 2Mc não dá continuidade a 1Mc, mas narra os acontecimentos desde o fim do reinado de Seleuco IV até a derrota de Nicanor, antes da morte de Judas Macabeu. Acredita-se que 1Mc foi originalmente escrito em hebraico, mas as cópias que temos estão em grego.

18 Montgomery considera Grócio o “pai da interpretação moderna de Daniel”.

19 Não pretendo aqui negar a historicidade das apropriações do texto de Dn, sua ressignificação ao longo do tempo.

20 Teodocião foi um judeu que traduziu o VT do hebraico para o grego e provavelmente trabalhou em Éfeso em 150 E.C. Se ele estava revisando a Septuaginta, ou se estava fazendo uma nova tradução a partir de manuscritos hebraicos que representavam uma tradição paralela ainda é debatido. A tradução de Th foi tão amplamente copiada na igreja cristã tanto que sua versão de Dn praticamente substituiu a versão da Septuaginta e tal preferência é citada por Jerônimo no seu prefácio a Dn. Orígenes deu à Septuaginta um lugar em sua Hexapla, mas um exame de suas citações prova que ele cita quase sempre de acordo com Th. Em Contra as Heresias 3.21.1, Irineu também cita Th. Além disso, a versão de Th de Dn está mais próxima ao Texto Massorético.

21 O Cântico de Azarias na fornalha e o Cântico dos Três Jovens, inseridos no capítulo 3 a partir de Dn 3:24.

22 As pessoas que viviam no “Império Bizantino” denominavam a si mesmos como romanos (romaioi) e o nome “Império Bizantino” é, na verdade, um insulto. Essa nomenclatura foi popularizada por eruditos franceses, como Montesquieu, que consideravam o Império em Constantinopla corrupto e decadente.

23 Procópio. História das Guerras. Vol. II. Livro 1. 4-5.

24 Segundo Joseph Campbell (2008: 184), enquanto Cambises, filho de Ciro, estava no Egito, ele mandou matar o seu irmão Esmerdís. O assassinato foi mantido em segredo e um sacerdote-mago chamado Gaumata, que se parecia com o irmão assassinado, assumiu o seu papel e incitou uma revolta em 522 A.E.C. Também Heródoto (Histórias 3.67) menciona esse acontecimento que foi confirmado pela descoberta da inscrição em Behistun. A inscrição, localizada no Irã, contém uma declaração de Dario I da Pérsia acerca de como o deus supremo Ahuramazda o escolheu para destronar um usurpador chamado Gaumata. Em 1598, o britânico Robert Sherley avistou a inscrição durante uma missão diplomática. Em 1835, Sir Henry Rawlison começou a estudá-la. O monumento também sofreu avarias durante a Segunda Guerra Mundial, quando soldados usavam-no como alvo na prática do tiro.

25 Eco de Mt 10:21.

26 Textos associados às revelações sobre segredos cósmicos e viagens ao além, que detalham as maneiras e práticas pelas quais aquelas revelações podiam ser obtidas e passaram a ser conhecidos como hekhalot ou ma´aseh merkabah. Desenvolvendo-se a partir das visões do primeiro capítulo de Ez, o misticismo hekhalot permeia a pseudepigrafia intertestamentária e também está representado em escritos rabínicos. O tema central é a descrição da jornada mística do visionário através dos vários palácios celestiais até encontrar a visão final do trono-carruagem de Deus. Logo, Hekhal (pl. hekhalot) significa ‘palácio’ ou ‘santuário’ através do qual o místico precisa passar em sua jornada para a visualização do trono divino. Merkabah refere-se ao “trono-carruagem de Deus” conforme descrito em Ez. Definição segundo Ramos (2008).

27 A partir da época do exílio na Babilônia (século VI A.E.C.), o aramaico, então língua internacional das chancelarias, superou o hebraico no uso corrente entre os judeus. O Targum (no plural targumim) é denominação das traduções, paráfrases e comentários em aramaico da Bíblia Hebraica. O Targum Palestinense do Pentateuco é formado pelos textos do targum Pseudo-Jônatas, Targum Fragmentário, fragmentos do Cairo e Codex Neophyti (Barrera, 1995: 387).

28 Texto da primeira metade do século VII E.C., a Lenda de Alexandre se baseia em tradições lendárias acerca da vida do conquistador macedônio, cujos exemplares mais célebres são as diversas versões e recensões do Romance de Alexandre. É, no entanto, um texto intrinsecamente cristão, no qual as viagens e conquistas de Alexandre são entendidas não como obra de um conquistador pagão, mas de um pio servo de Deus (Maravalhas, 2009).

29 As figuras de Gog e Magog já apareciam na Bíblia Hebraica em referências dispersas. Gn 10:2 menciona apenas Magog como um dos descendentes de Jafé, filho de Noé. Em Ez 38-39, Gog, rei de Magog e líder do exército invasor, vem das remotas partes do norte para punir Israel por ordem de Deus. No Ap 20:7-10, Gog e Magog são nações aliadas de Satanás na batalha final contra os santos.

30 Josefo. Guerra dos Judeus 7.244-46 e Antigüidades Judaicas 1.123.

31 O Syr Apoc Dan é classificado como um apocalipse histórico por Henze, mas, segundo Collins (1984: 4-9), nos meios de revelação dos apocalipses históricos – como os sonhos simbólicos, a epifania, o discurso angélico e o diálogo revelador – é comum a presença de um anjo que explica a revelação por meio de um diálogo, um discurso ou interpretação.

32 Termo latino que se refere ao guia angélico encontrado nos apocalipses judaicos.

33 Como, por exemplo, Uriel em 4Esd e Gabriel em Dn.

34 Dn; 1En; 4Esd; 2Br; 3Br.

35 Adela Collins, desde 1979, chamou atenção ao tratar o modo pelo qual apocalipses, especialmente o Ap, usam interações sutis entre a “velha história”, a narrativa primordial do mito de combate, e a “nova história” do relato de provação e oposição para criar um efeito próprio.

36 Or. Sib. 5.33.

37 Or. Sib. 5.106-10.

38 Contra as Heresias 3.5.5; 3.7.2; 5.25.1,3.

39 Uma minoria da tradição apocalíptica cristã vê o Anticristo como a encarnação do Diabo (McGinn, 1994: 282).

40 Contra as Heresias 5. 25 e 5.30.2.

41 Hipólito também cita Is 10: 12-17; 14: 4-21; Ez 28: 2-10; Dn 2: 31-35; 7:2-8 como pré-figuras do Anticristo (Hill, 1995: 103-104).

42 A figura da besta que sai do mar surge em Ap 13:1-10, uma imagem que parece em boa medida ter sido moldada em Dn 7:2-8 e em vários outros versículos do capítulo. Ap 13:5 é uma evidente alusão a Dn 7:8 sobre palavras arrogantes. Há também um forte paralelo entre Ap 13:5-7 e Dn 8:10-14, sendo elementos comuns entre as passagens: o ataque a seres celestes, a rebelião contra Deus, o ataque contra o templo e a indicação da duração do evento.

43 Políbio. Histórias 26.7. Políbio chama a Antíoco IV de “Epímanes” pelo estranho comportamento do rei, seu mau hábito de se associar a pessoas da mais baixa condição e de aparecer nos banquetes dos jovens inesperadamente com um pífaro e alguns acompanhantes, de sorte que os convivas, ao vê-lo, se levantavam e se retiravam.

44 Baseado nessas passagens, Nestle argumentou, em 1884, que a expressão “abominação da desolação” era usada como um jogo de palavras da forma semítica do nome de Zeus Olímpius (Baal Shamin). Embora essa teoria tenha sido questionada, ela ainda parece a Peerbolte (1996: 235) a melhor explicação, pois em 1MC 1:59, a “abominação” é descrita como algo erigido em cima do altar.

45 Alguns intérpretes modernos argumentam que o livro de Dn deriva do círculo de sábios (maskil) (Henze, 2010: 20).

46 De acordo com Henze (2010: 19), o termo é derivado de Citium, cidade em Chipre, e usado em Dn 11:30 e nos MMM como uma designação para Roma.

47 A medida pela qual essa limitação é apresentada levou a diversas especulações. O plural aramaico “tempos” é geralmente interpretado como um dual hebraico (cf. o hebraico em Dn 12:7), segundo Peerbolte (1996: 228). O dual é uma flexão gramatical de número (como o singular e o plural), inexistente no português, que indica um conjunto de duas coisas, como seres ou entidades. Nesse trecho há um dual nominal arcaico que não é usado no sistema verbal.

48 Dn 8:17; 8:19; 9:26, 11:27, 35, 40 se relacionam com Hab 2:3.

49 Ez 38-39; Rolo da Guerra nos MMM.

50 Antigüidades Judaicas, 12.357-361.

 

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Recibido: 15-02-2014
Aceptado:
18-10-2014
Publicado:
04-12-2014

 

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